Desde há muito tempo aderi aos orgânicos, mas na era pré
pandêmica me atinha principalmente às frutas, verduras e legumes. Além disto, desde que
meu ninho esvaziou deixei de estocar o que quer que fosse. A pandemia mudou
tudo. Descobri um hortifruti sensacional, compra online, entrega em domicílio.
E que, além dos vegetais frescos, tem grãos -o melhor milho de pipoca de todos
os tempos- açúcar demerara, mel, molho de tomate pronto, farinhas. Aderi
entusiasticamente. E cometi a bobagem de comprar mais feijão do que sou capaz
de comer.
Hoje fui buscar o último pacote para cozinhar. No fundo de
uma das caixas de plástico, brancas, em que guardo meus mantimentos, percebi
pontinhos pretos. Imaginei que fosse um saquinho de linhaça que tivesse furado.
Só que a linhaça se movia, reparando bem. Tirei a caixa de dentro do armário
para ver melhor. Minhas amigas, meus amigos, faltam-me recursos narrativos...
Conheci caruncho muito bem. Criança bem novinha, morei certa
vez em uma casa que tinha milho estocado em um depósito nos fundos; não atino
com o porquê, já que o meu pai, na época, era funcionário público. O fato é que
isto nos fez íntimos de algumas pragas. Conheci, mas me esqueci da sua existência,
não saberia dizer desde quando. Certamente foi banido do dia a dia urbano, o
que fala muito sobre o teor mortífero das substâncias com que nossos alimentos
são esterilizados.
Minha redescoberta do caruncho aconteceu há umas dez horas.
Desde então, vivo o apocalipse zumbi.
Juntei o pacote de feijão e os outros alimentos empesteados na
mesma caixa de plástico. Varri, limpei, catei caruncho em cada cantinho do
armário. Devo acrescentar que, para a prateleira de baixo dos mantimentos (já
que eu não estava mais estocando) eu tinha transferido as louças louçonas e
loucinhas, talheres, cumbuquinhas fofas e outros apetrechos de mesa para dias
especiais. Ah, sim, e duas caixas de talheres idem. Vedei a caixa apocalíptica
com filme plástico e sentei no banquinho, munida de paciência e papel toalha, para
vistoriar os objetos. Poupo-vos dos detalhes sórdidos. Cacei os bichinhos um a
um, destapando um angulozinho da caixa-mãe e despejando-os ali. Um a um. Com a
certeza de que um único casalzinho que me escapasse seria suficiente para o
retorno do pesadelo.
A primeira tentativa, claro, foi a de matá-los como a gente
mata uma barata, pisando em cima. Não dá certo. São muitos, são centenas, são
muito pequenininhos e cascudos.
E sabem se fingir de mortos. Não, não estou inventando isto.
Se fingem de mortos. Então, aquele cisquinho que sobrou no chão, quando você
menos espera, volta a andar. Vários cisquinhos. Cada um para um lado.
Desesperador.
Passei, então, à terceira etapa – a caça dos ressuscitados,
devidamente encaminhados para a caixa. Destampandinho e voltando a tampar a
cada indivíduo acrescentado, é bom que se diga. Isto posto, sem contemplação
nem piedade, encontrei um frasco de inseticida e abri o buraquinho pela última
vez.
Passei as horas seguintes me sentindo um verdugo medieval,
vendo os bichinhos em agonia. Porque demoraram, ah, demoraram muito pra morrer.
Pensei depois que poderia ter jogado água fervendo, teria sido mais piedoso.
Mas meus pruridos éticos duraram pouco. Nas horas seguintes,
todos os cisquinhos que tinham escapado da primeira inspeção/execução entraram
em atividade. Entendi que aquilo iria durar o resto do dia. Da semana, da vida,
talvez.
Preparei uma caixinha pequena com água, fria mesmo, para
afogá-los, um a um. Desisti de pegá-los a seco e levar até a caixa, porque eles
lutam bravamente pela vida. As perninhas se debatem e quando você tenta soltá-lo
na água ele se agarra e sobe por sua mão. Tive que dar uns tabefes em alguns
antes de triturá-los com a unha. Paciência tem limite.
Aí, desenvolvi a técnica de levar a caixinha até onde estava
minha próxima vítima, molhar os dedos antes da captura e rapidamente soltá-la
já dentro da água. Acontece que eles sabem nadar.
Eles sabem nadar. Não estou inventando. Não são todos, mas
alguns conseguiam chegar à beira e subir pela parede da caixa. Não estou
inventando. Ainda assim, persisti no combate corpo a corpo, até agora há pouco. Olhando os que pereceram pela
água, descobri que eles têm asas.
Eu não estou inventando. Eles têm asas. Não sei se usam, mas
têm. E
Já faz duas horas que não vejo nenhum. Não quero ser ingênua
de pensar que consegui, mas é verdade que já faz um tempinho que não vejo
nenhum. Ainda faltava dar um google para descobrir que eles botam ovinhos,
invisíveis -ovinhos de cisquinhos que sabem se fingir de mortos- e que podem
estar neste momento sobrevivendo naquele cantinho do armário que eu não
alcançava direito. Permanece o suspense.
Haverá, um dia desses, a hecatombe nuclear, a chegada do
meteoro ou a próxima peste, o que vier primeiro. Esses bichos, trabalhadinhos
no glúten, se fingirão de mortos e sobreviverão.
Depois que a coisa se acalmar, partirão em hordas - a pé,
nadando ou voando. Comerão as baratas, o Wall-E, o José Sarney e o Sílvio Santos. Alimentados,
partirão para replantar o trigo e repovoar a Terra.
Hahahaha sensacional! A saga do caruncho! Como conheço!
ResponderExcluirMari, é rir pra não chorar... Era a hora que você estava me ligando, hahaha
ExcluirAdorei ri muito tava precisando disso
ResponderExcluirTaninha, hoje eu também ri.... Ontem, babei de ódio e desespero! hahahaaaa
Excluircaramba! hehe
ResponderExcluirEntendi a "emergência doméstica" do outro dia. Um pouco cruel. mas divertido!
ResponderExcluirKkkkk, adorei, daí nasce uma bela série Netflix. Só faltou no final comer um certo presidente.
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