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Mostrando postagens de junho, 2020

Lendo meu jornal (EM)

Sentei-me num café da Praça Vermelha, na única vez em que fui a Moscou. Mesmo sem entender patavina, abri solene o Pravda , era um sábado de sol. O rapaz que me servia mostrou discretamente uma notícia e sussurrou, arranhando um espanhol: no túmulo de Stalin foi achado um livro de poesias, era Maiakovski, mas a capa indicava o Capital. Em Paris por sua vez, agora no Café de Flore, também era um sábado de sol, abri encantado o Libération e descobri que tinham visto Jean Genet andando distraído pelas margens do Sena. No Rio de Janeiro, também num sábado de sol, abri o primeiro jornal que encontrei sobre o balcão. No segundo caderno fiquei triste com a manchete: São Sebastião declarou que não volta nunca mais.

DARÍN NUM SÁBADO À NOITE

Foto capturada do site Filo.tón Por SOLANGE REIS Cada um espera o que quiser de um sábado à noite. Eu espero boa companhia, uma taça de vinho, pizza de farinha de couve-flor com dois queijos e um filme com Ricardo Darín. Esse argentino é como sopa quente no inverno. Dá um conforto... Darín é quase feio. Dentes demasiado grandes, cavalares; queixo afunilado; nariz lamentável. Seus olhos azuis e cabeleira farta não bastam para equilibrar o rosto. Com baixa estatura, idade e barriga consolidada, passa longe de ser sexy. Mas aposto que é um grande amante. Que ama com calma e fundo, até a alma se sentir beijada. Uma versão portenha do Chico imaginário. Ele simplesmente me convence de tudo. Mesmo quando o roteiro e a direção derrapam em Kóblic. Ou, então, quando contracena com uma atriz quase alface em Sétimo. Darín é o amigo fiel de Truman; o cidadão atormentado com o Segredo dos Teus Olhos; o ex que desperta Um Amor Inesperado. Darín somos todos nós quando prota

NO TÚMULO DO POETA RENÉ CREVEL (edu)

Um poema em prosa de EDUARDO MUYLAERT Da minha casa na avenue de Chatillon que hoje é a avenue Jean Moulin eu podia ter ido a pé em pouco tempo ao descuidado cemitério de Montrouge Acabei nunca indo procurar — na quadra dezenove o túmulo discreto de uma família burguesa singelo granito rosa onde repousam serenos os restos do inquieto poeta René Crevel Se não dou certo em nada me mato — tinha dito leal, cumpriu a promessa — só mais tarde acabou reconhecido cultuado pranteado como poeta e escritor surrealista A vida teve cheia de intempéries tinha ainda catorze anos quando a mãe que só fazia blasfemar contra o cadáver o arrastou para ver o pai dependurado Sem ilusões. Fazia amor com homens e mulheres vivia com a cruel tuberculose — a peste branca e tinha amigos em diversos sanatórios além do peito, doíam muito os rins e a vida Tinha uma amante argentina, —   Condessa Cuevas de Vera a quem deixou a última mensagem — “Favor

O COLAR DE BETSABÉIA (edu)

  Por — EDUARDO MUYLAERT A primeira vez que o vi, fiquei totalmente fascinado. Eu tinha 26 anos, fazia uma pós em história natural em Nova Iorque, o dinheiro só dava para refeições ligeiras na cantina da faculdade. Uma amiga me mostrou a joia num catálogo, soube que estava, afinal, ao alcance de todo mundo.   Claro, nunca é para “todo mundo”, só para quem pode, e eu, efetivamente, não podia, não naquele bendito ano 2000, mesmo tendo sobrevivido ao “bug do milênio”. O mundo, felizmente, não acabara. Ainda não. A peça parecia, mal comparando, um exótico colar de índios da América Central, mas com um distintivo toque art déco . Eram legítimos tubos de coral, entremeados de contas de turquesa e ônix, tudo combinado com pequenos diamantes, numa corrente de platina e ouro. Nem me   interessei pelo preço, não era para o meu bico mesmo, eu não pertencia àquele mundo. Fiquei me perguntando, porém:   por que uns têm tanto, e outros quase nada? O dinheiro, em si, não me at

ONDE LEIO O MEU JORNAL (Edu)

  por — Eduardo Muylaert Gosto de ler o Globo olhando o mar do Leblon nos quiosques da calçada o coco com muita água invejo os que dão conta de driblar vento e areia ler tranquilos o diário na barraca em pleno sol distraídos nem reparam nos gritos:  — mate leão nos sacos de biscoito globo e nas bundas [e peitos] ao redor Gosto de ler o Guardian no terrasse bar da Tate Modern level 1 do Blavatnik Building depois ver uma exposição [qualquer uma] Em São Paulo tanto faz leio por alto o Estadão [tão cioso] aí mergulho na Folha [que se acha tão moderna] mais importante o expresso [sem falar no pão francês] Em Paris, no terraço de um café o Flore, o Deux Magots, o Tabac da esquina, começo pelo alegre Figaro, leve e conservador, aí ataco o Le Monde, esse sim é de rigor Em Milão, ou mesmo em Roma, sempre o Corriere dela Sera diante de uma bela chiesa a qual encaro de esguelha Agora viajo mais [muito mais] vou

Félix Faure, Homem e Barco

James Womack – tradução Eduardo Muylaert [Original publicado em maio de 2020 na Literary Review – Londres] Ele queria ser César, mas só foi Pompeu. Neste ano, 16 de fevereiro (mesma coisa todo ano, James), me dou conta da morte do presidente da França, Félix Faure, no ano mil oitocentos e noventa e nove, de grave apoplexia, enquanto recebia gratificação oral de sua amante, Marguerite Steinheil. Um festival apropriado e alternativo: orgasmo/morte, tão perto do Dia dos Namorados. Poucos anos após a morte de Faure, em mil novecentos e oito, President Félix Faure , um barco francês de quatro velas, naufragou na costa da Nova Zelândia. Faure lançou botes salva-vidas que chegaram à terra.  Ninguém morreu; a ilha não era deserta. Havia uma cabana, algumas provisões não muito antigas. Logo mataram albatrozes (‘longe de serem saborosos’) e depois dos albatrozes, os pinguins. Os pássaros ficaram logo traumatizados: após

UM DIA DE CADA VEZ, A FAXINA

    Alguns pontos de mofo no meu banheiro vinham desafiando minha autoestima. Não, eles não começaram agora, são pré-pandêmicos; talvez tenham começado a me atormentar neste momento porque tenho olhado mais para eles, ao mesmo tempo em que meus mecanismos de resiliência dão os primeiros sinais de esgotamento.    O fato é que hoje decidi encará-los. Com coragem. Eram só alguns pontinhos, coisa pra meia hora.     No máximo, vai, estourando, uma hora.   Essa uma hora, a primeira da manhã, já estourei, de cara, consultando tutoriais no YouTube, me apetrechando para o enfrentamento.    Faxina teórica.   O revestimento do meu banheiro, suporte físico dos fungos, tem uma história piegas. Necessário contá-la.   Tive um namorado, certa vez, um grande amor da vida. Tão doentinho quanto eu. Fomos felizes, ríamos muito na comparação dos nossos sintomas obsessivo-compulsivos. Fomos felizes.    Levamos a cabo, o namorado e eu, o projeto de revestir um banheiro, na casa d

UM DIA DE CADA VEZ: modesta contribuição à divulgação científica

A Covid-19 tem sido uma grande incógnita para a ciência. Algumas coisas, no entanto, já estão estabelecidas. 1. o vírus não tem pernas 2. o vírus não tem asas 3. quando uma curva está indo para cima, ela é ascendente 4. curva ascendente significa que o número de casos está aumentando 5. quando o número de casos está aumentando, as pessoas que circulam vão conduzir os vírus (que não têm pernas nem asas) para outros lugares e pessoas, e a curva vai ficar cada vez mais ascendente 6. o nome de quem manda abrir comércio para a rua se encher de gente na curva cada vez mais ascendente é criminoso 7. o nome de quem lamenta muito, mas é o destino de todos nós é comandante-em-chefe dos criminosos 8. se todos os brasileiros mortos pela Covid-19 até hoje fossem postos de comprido na beira da pista, uma pessoa poderia ir a cavalo do Palácio do Planalto, Brasília(DF) até Águas Lindas de Goiás(GO), escoltado por uma linha ininterrupta de cadáveres

MINDFULNESS

Por EDUARDO MUYLAERT — Oi, que bom que você veio! — Por quê? Você achou que eu não vinha? — Não, claro que não. É que é a primeira vez que te convido, custei a tomar coragem. — Por quê? Você pensou que eu ia te dar mole? — Não, claro que não. Super normal tomar um chope e bater um papo. Só queria te conhecer melhor, afinal estamos sempre com outras pessoas. — Não estou acostumada com essa coisa de happy hour , sei que é moda, mas sou mais caseira. Não saio muito mesmo. — Então! As pessoas que não agitam muito costumam ser as mais interessantes. Têm vida própria, pensam por si mesmas. — Aliás, odeio chope, cerveja, tudo. Pode pedir uma caipirinha de limão para mim, pouco açúcar, muito gelo. — Vodca ou cachaça? — Vodca, claro, está me achando com cara de cachaceira? — Adorei esse seu lenço azul, valoriza o rosto. — Pode parar, se é para vir com conversa mole, suspende a caipirinha e eu estou indo. — Não, pelamordedeus, não me leve a mal. Só fiquei impressio

DE PERNAS PARA O AR (Edu)

Por EDUARDO MUYLAERT Joaquim Fernandes era um rapaz tímido, não fazia sucesso com as mulheres, também não era bonito nem feio, talvez um pouco sem graça. Não combinava com carnaval. Nos bailes se tornava um chato, enchia a lata e desandava a falar besteiras, ninguém aguentava. Joaquim não se via enturmado na folia, queria mesmo era ter uma namorada, nem precisava ter beleza ou outras qualidades, só tinha que ter pernas bonitas. Sim, acreditem, essa era a única exigência de Joaquim Fernandes, uma espécie de fetichismo que nunca escondeu. Todos os anos se renovavam as esperanças de Joaquim no caminho do clube Caiçara, o melhor da cidade. Quem sabe dessa vez vai; tinha apostado aos 14, 15, 16 e 17. Agora já era maior de idade, ia jogar todas as fichas. De fato, logo ficou vidrado numa morena não muito grande, nem chegou a reparar no rosto, tão distraído estava com as pernas sinuosas, em tons que tentou definir como uma mistura delicada de sépia, rosa, e um pouco de our