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UM DIA DE CADA VEZ, A FAXINA


 

  Alguns pontos de mofo no meu banheiro vinham desafiando minha autoestima. Não, eles não começaram agora, são pré-pandêmicos; talvez tenham começado a me atormentar neste momento porque tenho olhado mais para eles, ao mesmo tempo em que meus mecanismos de resiliência dão os primeiros sinais de esgotamento.
   O fato é que hoje decidi encará-los. Com coragem. Eram só alguns pontinhos, coisa pra meia hora.     No máximo, vai, estourando, uma hora.
  Essa uma hora, a primeira da manhã, já estourei, de cara, consultando tutoriais no YouTube, me apetrechando para o enfrentamento.
   Faxina teórica.
  O revestimento do meu banheiro, suporte físico dos fungos, tem uma história piegas. Necessário contá-la.
  Tive um namorado, certa vez, um grande amor da vida. Tão doentinho quanto eu. Fomos felizes, ríamos muito na comparação dos nossos sintomas obsessivo-compulsivos. Fomos felizes.
   Levamos a cabo, o namorado e eu, o projeto de revestir um banheiro, na casa dele, com pastilhas de vidro em vários tons de azul. Não sei se não havia ainda essas modernidades prontas, talvez tenha sido só sintoma do TOC; o fato é que compramos aqueles quadrados de pastilhas coladas em papel, em todos os tons de azul que encontramos. Ele, que era dos dois o expert em contas, fez cálculos complicadíssimos e certeiros. Basicamente descolávamos um número de pastilhas de cada cartela e íamos colando no lugar outros tons, obedecendo a uma progressão numérica precisa; compusemos o degradée azul perfeito. O banheiro mais bonito do mundo.  
   Algum tempo depois de pronto o banheiro, o romance desandou.
   Faxina melancólica.
  Talvez por ter me sentido lesada por não ter usufruido do nosso banheiro-obra-de-arte o quanto merecia, passei a acalentar o sonho de ter o meu próprio banheiro em tons de azul. Numa reforma feita na estica, optei por revesti-lo com uma cerâmica pronta de piscina, que era mais barata do que pastilhas de vidro. Pois foi justamente nos rejuntes dessa cerâmica que o mofo deitou e rolou.
   Faxina módica.
 Passei a manhã preparando misturas com variados teores de cloro, borrifando, escovando, desentranhando. Descobri para que serve bicarbonato de sódio, para além de fermentar massas e clarear dentes. Descobri que não tinha bicarbonato de sódio, porque nunca entendi o porquê de usar bicarbonato de sódio, ao invés de pó royal e creme dental branqueador. Por várias vezes voltei aos tutoriais, para constatar que existem situações mais graves do que a minha. No mofo, na obra e na vida.
   Faxina filosófica.
  Esgotado o poder antifúngico e limpador do cloro e das escovas, pensei que poderia ser uma boa ideia raspar os vãos ainda acinzentadinhos com uma chave de fenda. Se eu preparasse outra solução de água sanitária com água quente –“atenção, de morna para quente”, advertia um dos tutoriais- o trabalho de raspagem seria potencializado.
   Faxina quântica = física, mecânica, química e energética.
  Consumi o resto do dia na tarefa braçal. O final da tarde me surpreende, neste momento, de volta aos tutoriais. Desta vez pesquisando tinta branca para rejuntes. Ainda existem alguns lugares secretos onde a alvura não é total.
   Faxina nosocômica = psiquiátrica e diagnóstica. 
   Aqui, prontinha para o internamento.

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