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DE PERNAS PARA O AR (Edu)




Por EDUARDO MUYLAERT

Joaquim Fernandes era um rapaz tímido, não fazia sucesso com as mulheres, também não era bonito nem feio, talvez um pouco sem graça. Não combinava com carnaval.

Nos bailes se tornava um chato, enchia a lata e desandava a falar besteiras, ninguém aguentava. Joaquim não se via enturmado na folia, queria mesmo era ter uma namorada, nem precisava ter beleza ou outras qualidades, só tinha que ter pernas bonitas. Sim, acreditem, essa era a única exigência de Joaquim Fernandes, uma espécie de fetichismo que nunca escondeu.

Todos os anos se renovavam as esperanças de Joaquim no caminho do clube Caiçara, o melhor da cidade. Quem sabe dessa vez vai; tinha apostado aos 14, 15, 16 e 17. Agora já era maior de idade, ia jogar todas as fichas.

De fato, logo ficou vidrado numa morena não muito grande, nem chegou a reparar no rosto, tão distraído estava com as pernas sinuosas, em tons que tentou definir como uma mistura delicada de sépia, rosa, e um pouco de ouro velho.

Tentou chegar perto, mas na mesa dela havia um cavalheiro sisudo, devia ser o pai, não dançava e não sorria; uma senhora de bochechas largas, podia ser a mãe, queria dançar mas não se atrevia; e ainda um rapazote que, com certeza, não era namorado nem nada, talvez o irmão menor, pela desatenção com que ela o contemplava.

O máximo que conseguiu, na segunda noite desse carnaval de 1999, foi sentar-se perto, invadiu uma mesa de conhecidos que estranharam aquela recente intimidade, tudo para olhar por baixo da mesa da garota. Precisava, era urgente, confirmar se as pernas eram mesmo tudo que antevira.

A confirmação o deixou perplexo, achou que tudo podia não passar de ilusão de carnaval, que tal perfeição não existia nem nas pinturas da renascença italiana.  Em vez de se alegrar, aumentou a angústia, aquelas eram as pernas da sua vida.

Na terceira noite de baile, a última, tomou coragem e entrou na roda, ao som de linda morena, morena, morena que me faz penar, a lua cheia, que tanto brilha, não brilha tanto quanto o teu olhar, ah, só o velho Lamartine Babo para exprimir tais delicadezas no clima frenético do salão do velho Caiçara.

Ele tentou encaixar morena tem pena, sem atinar que aí era Pixinguinha, não tinha nada a ver. Lembrou de João Gilberto, sorriu pra mim, não disse nada porém, e ela tinha mesmo um sorriso, como que achando graça no interesse daquele pirralho desajeitado como foca de aquário.

Ficou por aí, foi só no carnaval seguinte, ou seja, no ano 2000, que um saiu à procura do outro, como quem não quer nada, e na última noite rolou um beijo discreto no canto da boca. A dona das pernas se chamava Rosa, e o destino fez com que namorassem, noivassem, se casassem e tivessem dois filhos.

 O começo não foi fácil, Joaquim cheio de manias, Rosa tentando se acostumar, mas venceram os primeiros anos. Foi aí que entrou na vida do casal um novo personagem, mais precisamente o personal.

Joaquim trabalhava muito, não é fácil sustentar uma família hoje em dia; logo desenvolveu uma barriguinha e estava sempre cansado. Rosa o convenceu de que deviam cuidar do corpo, não podiam envelhecer sem energia, ainda eram jovens, afinal, hoje as pessoas vivem muito.

Léo, o personal era uns dez anos mais jovem do que o casal, um tipo germânico, loiro, olhos claros, braços musculosos e pernas bem feitas. Como costuma acontecer, Léo dava muito mais atenção à flexível Rosa do que ao encarquilhado Joaquim, que bufava a aula inteira.

Joaquim começou a cismar que ali tinha coisa. Rosa nitidamente gostava dos elogios do bonitão, o que não deixa de ser uma injustiça: quem está do lado da esposa no dia a dia, aguenta os filhos, trabalha para valer, sustenta a casa, visita a sogra, saco, é que deveria ter prioridade.

Mas não é assim que as coisas acontecem. Até por causa dos ciúmes, Rosa achou um horário só para ela no fitness do clube, o mesmo Caiçara onde o namoro começara, alguns bons anos antes. Chegava em casa de cabelo molhado, mas tinha explicado com delicadeza ao marido que tomava banho no ginásio para não chegar suada em casa. Joaquim Fernandes, imaginando-se traído nas suas barbas, subia pelas paredes, mas, humilhado, não falava nada.

 Joaquim começou a tratar mal a mulher, primeiro sumiram as costumeiras delicadezas, depois vieram as piadas grosseiras, por fim a franca agressividade. O auge aconteceu quando Rosa, ressentida, anunciou que pretendia descansar por uns dias na casa da prima, no Rio de Janeiro. Ela achou que uma pausa podia ajeitar as coisas com o marido, mas um Joaquim Fernandes apoplético quase teve um infarto, passou mal e, turrão, disse então vá, talvez seja melhor mesmo. Mas, no fundo, sabia que seu casamento começava a terminar.

Foram dias de angústia e ódio para ele. Pensou em ir bailar por sua conta, conquistar alguma mulher nova, mas se olhou no espelho e viu que estava bem fora de forma. Tentou a literatura, Machado de Assis, e num instante concluiu que Capitu era uma puta mesmo. Para se vingar, ligou a tevê para tentar flagrar alguma sacanagem nos bailes da madrugada.

Aí veio o susto. Passavam o baile do Copa, o mais luxuoso do Rio. Entre pierrôs e colombinas, gente quase sem roupa, de repente apareceu um par de pernas daquelas que tanto o atraiam. Era uma odalisca, sob um véu transparente, que deixava à mostra o sutiã e a calcinha violetas. Sim, com certeza ele conhecia aquelas pernas.

Tremeu de ódio ao pensar que era Rosa a figura mascarada que dançava de maneira escandalosa, grudada num pirata musculoso. O formato das pernas era o dela, sim, agora não tinha mais dúvidas. Foi aí que percebeu que se enganara de pernas, a odalisca sensual era, nada mais, nada menos, do que Léo, o maldito personal, que dançava feliz nos braços do corsário.

 Enquanto isso, o casamento de Joaquim Fernandes, que já estava de pernas para o ar, ia pelos ares como um volátil jato de lança-perfume.




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