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Mostrando postagens de julho, 2020

SOLIDÃO AMERICANA (Edu)

por — Eduardo Muylaert Se sua vida anda meio vazia nessa hora da terrível pandemia experimente uma revista literária tipo a New York Review of Books. Se não conseguir achar um companheiro (não é fácil), sua solidão, ao menos, pode virar poesia. Punk, alternativa, bi/pansexual Mulher asiática procura amor durante a biocrise Preguiçosa poeta no final dos seus 20 anos, Millenial, sardônica e irreverente. Você: incisivo, experiente, carinhoso, sem Covid-19.  Vamp-me via zoom ou facetime Ponha minha alma em fogo Instagrame meu ego impaciente Hashtague meu desejo. Nossos lábios ainda não se tocaram, tweet me, baby, tout de suite!  Sou anticorpo! Quem é você? Você também é Anticorpo? Como é vergonhoso ser o antígeno que ingrato - como uma taturana, engana seu anfitrião o dia inteiro a imitar você! Mulher, 70 anos, NY, procura /gosta de homem afetuoso que aprecie livros e música. Meu pombo correio traz uma mensagem para libertar

A COISA NÃO FUNCIONA

  por — Eduardo Muylaert   Ela se percebeu um pouco ridícula, a torradeira impassível e ela a olhar desconsolada. Se ele estivesse aqui, dava um jeito, se fosse um celular dava reset . Nunca se conformou, os aparelhos deviam vir em português, é lei, não é? Tostar o pão vem de outra era, mais calorosa. As primeiras máquinas queimavam as pontas dos dedos. Dez anos depois, o pão se pôs a saltar, como a rã do Matsuo Bashô a perturbar as águas do velho tanque com seu furuike ya kawazu tobikomu mizu no oto. Logo mais surgiriam as três maravilhas que moldaram uma civilização: a torradeira automática, o pão de forma em fatias e o breakfast, incluindo ovos com bacon e uma quantidade extraordinária de calorias. Não havia lar sem torradeira na América do século XX. Na casa de Portinari há uma máquina de café expresso, cilindro brilhante de aço com um só pistão. Maria cresceu com o aroma do café passado no coador, a mãe botava bastante açúcar, passou a ver Candinho, o pi

GULODICE (Edu)

  por — Eduardo Muylaert       Fui traído pela memória e pela minha geladeira. Deixei sob sua zelosa guarda um precioso potinho de ovas de esturjão. Louco por uma segunda vez, abri o pote e dei de cara com a gosma verde que maculava o produto original. O sugestivo aroma de penicilina foi decisivo para o enjoo. Claro, a culpa foi minha, não respeitei a reiterada advertência. Certas coisas não têm volta, depois de abertas, devem ser consumidas de imediato. Ou descartadas, sem cerimônia e sem remorso. O prazer, como a história para Marx, pode se repetir como tragédia ou como farsa. A iguaria já cumprira o seu papel. Naquela noite inesquecível, com cenas de filme francês, as ovas pareciam caviar, o espumante fez as vezes de champanhe. No embalo, faltou o ponto final, não tive peito para o clássico “ the end ”.

LE FRISSON DE PARIS (Edu)

par — Eduardo Muylaert Un frisson. Chaque fois que j’arrive à Paris c’est comme si c’était la première et la dernière fois. D’abord il y a eu le rêve, le songe de la ville dite Lumière, cliché plus qu’imparfait. Non, ce n’est pas la bohème de Montmartre, ses maisons closes, ses spectacles de travestis, qui m’ont fait venir. Ce sont plutôt les mémoires de Henry Miller et Anaïs Nin, Man Ray et Lee Miller, Picasso et Dora Maar, où bien Bataille et Dora Maar, ou encore le docteur Jacques Lacan et les électrochocs qui ont enlevé toute joie de sa cliente Dora Markovitch. Sartre et Simone, on peut toujours les lire. Barbara et la Greco, on peut toujours les entendre. Le quartier Latin, on peut toujours le parcourir, même si ce n’est plus celui de jadis. Mais pour connaître Paris il faut voir tomber la pluie qui remplit de reflets les rues, les trottoirs et la Seine, mouille la tête des passants et fait surgir les parapluies qui se frôlent agressifs ou tendres, tout

GASPAR E A LIVRARIA (Edu)

por — Eduardo Muylaert Você não imagina o que aconteceu com o Gaspar, sabe o Gaspar da livraria? Ele costumava ficar até tarde, solteiro, mora sozinho, não tem muitos amigos. É, na Livraria do Fórum, ali perto da Praça João Mendes, atrás do velho Palácio da Justiça, por isso tem esse nome. Não, não são livros jurídicos, tem uns também, mas é mais um sebo que tem de tudo, livros embolorados, enciclopédias antigas, revistas dos anos 50, tipo Manchete, Cruzeiro, histórias em quadrinhos. Eu teria medo de sair sozinho por ali tarde da noite, tem todo tipo de malucos, alcoólatras, drogados, gente que dorme na rua. Mas ele não ligava, todo mundo saía às seis da tarde, baixavam a porta de ferro, aí ele se aboletava numa poltrona cheia de ácaros, escolhia um livro ao acaso e mergulhava até sentir sono. Só então ia pegar um ônibus na Praça da Bandeira para voltar para sua quitinete na Nove de Julho. Gaspar sempre foi destemido, mais de uma vez uma dessas fi