por — Eduardo Muylaert
Você não imagina o que aconteceu com o Gaspar,
sabe o Gaspar da livraria? Ele costumava ficar até tarde, solteiro, mora
sozinho, não tem muitos amigos. É, na Livraria do Fórum, ali perto da Praça
João Mendes, atrás do velho Palácio da Justiça, por isso tem esse nome. Não,
não são livros jurídicos, tem uns também, mas é mais um sebo que tem de tudo, livros
embolorados, enciclopédias antigas, revistas dos anos 50, tipo Manchete,
Cruzeiro, histórias em quadrinhos.
Eu teria medo de sair sozinho por ali tarde da
noite, tem todo tipo de malucos, alcoólatras, drogados, gente que dorme na rua.
Mas ele não ligava, todo mundo saía às seis da tarde, baixavam a porta de ferro,
aí ele se aboletava numa poltrona cheia de ácaros, escolhia um livro ao acaso e
mergulhava até sentir sono. Só então ia pegar um ônibus na Praça da Bandeira para
voltar para sua quitinete na Nove de Julho.
Gaspar sempre foi destemido, mais de uma vez uma
dessas figuras da noite se aproximou para pedir dinheiro, ou um cigarro, ou só
para dar um susto, mas ele seguia firme, sem o menor abalo. Foi assim até à
noite em que aquilo aconteceu. Claro, até aqui a história não poderia ser mais
banal. Quem não conhece a vizinhança da catedral? Quem gosta de andar por ali depois
que o sol se põe?
Pois bem, Gaspar nunca se importou, mas uma noite
aconteceu o que vou contar. Ouvi do próprio Gaspar. Ele relia, pela décima vez,
as Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando notou que não estava sozinho. Havia
mais alguém na livraria, uma ligeira tosse denunciara o intruso. O rapaz ficou
imaginando como alguém poderia ter entrado àquela hora, talvez um funcionário,
distraído, tenha deixado destrancada a porta lateral. Que aborrecimento.
Pensou em chamar a polícia, mas não gostava muito
de polícia. Resolveu encarar o invasor e expulsá-lo, de preferência explicando
que a casa estava fechada, que poderia voltar no dia seguinte, horário
comercial, etc. Começou a andar entre as estantes, mas não via ninguém, embora
ouvisse ruídos alternados, uma tossidinha aqui, uma andadinha ali.
Começou a sentir um pouco de medo, pegou uma
bengala caso fosse preciso se defender, quando ouviu uma voz: — Desculpe,
essa bengala tem dono. Gaspar quase desmaiou de susto ao se deparar com um
senhor com roupas antigas, ainda mantendo certa elegância.
No canto escuro em que se encontrava, a aparição
podia lembrar a figura de Machado de Assis, com certeza era algum cliente
idoso, talvez meio desmemoriado, que perdera a noção do horário. O homem
começou por dizer que tinha ficado encantado ao ver Gaspar lendo as Memórias
Póstumas, que considerava um ótimo livro.
Contou que, inclusive, a obra tinha sido
traduzida para o inglês, e saudada como o mais moderno romance de vanguarda
lançado em 2020: meta-ficcional e metafísico, disse um crítico na New Yorker. Quando
a obra saiu, em 1881, ninguém imaginou tanto reconhecimento. Pena que esteja em
domínio público, e que o autor não possa receber direitos autorais, uns cobres
são sempre benvindos, mesmo após a morte.
Gaspar estava imerso na leitura da história de
Brás Cubas, que narra sua vida depois de morto. Claro que não passava de
ficção, uma grande ficção, aliás, mas ficou confuso ao ouvir essas palavras. Na
dúvida, começou a discutir os personagens, e foi descobrindo detalhes que não
estavam na edição que estava lendo.
Descobriu aspectos insuspeitados da esperta Virgília, o
grande amor de Brás Cubas tinha uma pinta em lugar estratégico, nunca teria
imaginado. Eugênia, que Brás desprezara por ser coxa, podia ser um furacão. O
homem por fim, falou com enorme desprezo de Lobo Neves, o marido que Virgília
traía com Brás, isso não vale nada.
De Quincas Borba o homem se recusou a falar,
franziu o cenho e disfarçou, evidente antipatia. Quanto à crítica, confessou ignorá-la,
embora implicasse um pouco com Roberto Schwarz, esse pessoal da USP é muito intrincado.
Às tantas disse: — Meu jovem, é tarde, melhor você se recolher, a região aqui é
meio perigosa. Adoro conversar, mas na minha idade eu canso um pouco. Talvez
volte outro dia, não é fácil encontrar interlocutores como você.
Gaspar apagou as luzes, ligou o alarme, voltou
umas três vezes para ver se tinha trancado bem a porta, depois de se certificar
de que não havia mais ninguém na livraria. Por onde o homem saiu, ele nunca
descobriu, o que sempre o intrigou. Já na cama, pronto para dormir, não
conseguia pensar em outra coisa.
Gaspar nunca mais voltou a falar no assunto, pediu
que eu não comentasse com ninguém, podiam achar que estava louco. Algumas
noites, porém, ele chega tarde em casa com um ar diferente, animado como se
tivesse encontrado um velho amigo e batido um bom papo. E não consegue dormir, pensando em como as
pessoas podem entrar e sair de uma livraria sem passar pela porta.
Comentários
Postar um comentário