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Mostrando postagens de 2020

UM DIA DE CADA VEZ, o caruncho

Desde há muito tempo aderi aos orgânicos, mas na era pré pandêmica me atinha principalmente às frutas, verduras e legumes. Além disto, desde que meu ninho esvaziou deixei de estocar o que quer que fosse. A pandemia mudou tudo. Descobri um hortifruti sensacional, compra online, entrega em domicílio. E que, além dos vegetais frescos, tem grãos -o melhor milho de pipoca de todos os tempos- açúcar demerara, mel, molho de tomate pronto, farinhas. Aderi entusiasticamente. E cometi a bobagem de comprar mais feijão do que sou capaz de comer. Hoje fui buscar o último pacote para cozinhar. No fundo de uma das caixas de plástico, brancas, em que guardo meus mantimentos, percebi pontinhos pretos. Imaginei que fosse um saquinho de linhaça que tivesse furado. Só que a linhaça se movia, reparando bem. Tirei a caixa de dentro do armário para ver melhor. Minhas amigas, meus amigos, faltam-me recursos narrativos... Conheci caruncho muito bem. Criança bem novinha, morei certa vez em uma casa que tinha mi

UM DIA DE CADA VEZ: vamos falar de números?

  Vamos falar de números? A equivalência de brasileiros mortos pela Covid-19 é a seguinte: Brasil =   todos os países da Ásia, exceto a Rússia Indígenas brasileiros = toda as cidades da Sicília, na Itália Estado de Pernambuco = todos os países da América Central Estado do Rio de Janeiro = todos os países da África Cidade de São Paulo = Alemanha 01 (um) hospital no Rio de Janeiro = 02 (duas) Coreias do Sul Centro de São Paulo = Estado do Novo México (EUA) Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro (RJ) = Pequim (os dados são de Camille Lichotti e Renato Buono, deu na Revista piauí de quem copiei a imagem, sem nem saber se podia) Pra quem preferir falar de extensões territoriais, sugiro dar uma olhada na matéria. É desesperador. https://piaui.folha.uol.com.br/geografia-macabra-da-covid-19/

SOLIDÃO AMERICANA (Edu)

por — Eduardo Muylaert Se sua vida anda meio vazia nessa hora da terrível pandemia experimente uma revista literária tipo a New York Review of Books. Se não conseguir achar um companheiro (não é fácil), sua solidão, ao menos, pode virar poesia. Punk, alternativa, bi/pansexual Mulher asiática procura amor durante a biocrise Preguiçosa poeta no final dos seus 20 anos, Millenial, sardônica e irreverente. Você: incisivo, experiente, carinhoso, sem Covid-19.  Vamp-me via zoom ou facetime Ponha minha alma em fogo Instagrame meu ego impaciente Hashtague meu desejo. Nossos lábios ainda não se tocaram, tweet me, baby, tout de suite!  Sou anticorpo! Quem é você? Você também é Anticorpo? Como é vergonhoso ser o antígeno que ingrato - como uma taturana, engana seu anfitrião o dia inteiro a imitar você! Mulher, 70 anos, NY, procura /gosta de homem afetuoso que aprecie livros e música. Meu pombo correio traz uma mensagem para libertar

A COISA NÃO FUNCIONA

  por — Eduardo Muylaert   Ela se percebeu um pouco ridícula, a torradeira impassível e ela a olhar desconsolada. Se ele estivesse aqui, dava um jeito, se fosse um celular dava reset . Nunca se conformou, os aparelhos deviam vir em português, é lei, não é? Tostar o pão vem de outra era, mais calorosa. As primeiras máquinas queimavam as pontas dos dedos. Dez anos depois, o pão se pôs a saltar, como a rã do Matsuo Bashô a perturbar as águas do velho tanque com seu furuike ya kawazu tobikomu mizu no oto. Logo mais surgiriam as três maravilhas que moldaram uma civilização: a torradeira automática, o pão de forma em fatias e o breakfast, incluindo ovos com bacon e uma quantidade extraordinária de calorias. Não havia lar sem torradeira na América do século XX. Na casa de Portinari há uma máquina de café expresso, cilindro brilhante de aço com um só pistão. Maria cresceu com o aroma do café passado no coador, a mãe botava bastante açúcar, passou a ver Candinho, o pi

GULODICE (Edu)

  por — Eduardo Muylaert       Fui traído pela memória e pela minha geladeira. Deixei sob sua zelosa guarda um precioso potinho de ovas de esturjão. Louco por uma segunda vez, abri o pote e dei de cara com a gosma verde que maculava o produto original. O sugestivo aroma de penicilina foi decisivo para o enjoo. Claro, a culpa foi minha, não respeitei a reiterada advertência. Certas coisas não têm volta, depois de abertas, devem ser consumidas de imediato. Ou descartadas, sem cerimônia e sem remorso. O prazer, como a história para Marx, pode se repetir como tragédia ou como farsa. A iguaria já cumprira o seu papel. Naquela noite inesquecível, com cenas de filme francês, as ovas pareciam caviar, o espumante fez as vezes de champanhe. No embalo, faltou o ponto final, não tive peito para o clássico “ the end ”.

LE FRISSON DE PARIS (Edu)

par — Eduardo Muylaert Un frisson. Chaque fois que j’arrive à Paris c’est comme si c’était la première et la dernière fois. D’abord il y a eu le rêve, le songe de la ville dite Lumière, cliché plus qu’imparfait. Non, ce n’est pas la bohème de Montmartre, ses maisons closes, ses spectacles de travestis, qui m’ont fait venir. Ce sont plutôt les mémoires de Henry Miller et Anaïs Nin, Man Ray et Lee Miller, Picasso et Dora Maar, où bien Bataille et Dora Maar, ou encore le docteur Jacques Lacan et les électrochocs qui ont enlevé toute joie de sa cliente Dora Markovitch. Sartre et Simone, on peut toujours les lire. Barbara et la Greco, on peut toujours les entendre. Le quartier Latin, on peut toujours le parcourir, même si ce n’est plus celui de jadis. Mais pour connaître Paris il faut voir tomber la pluie qui remplit de reflets les rues, les trottoirs et la Seine, mouille la tête des passants et fait surgir les parapluies qui se frôlent agressifs ou tendres, tout

GASPAR E A LIVRARIA (Edu)

por — Eduardo Muylaert Você não imagina o que aconteceu com o Gaspar, sabe o Gaspar da livraria? Ele costumava ficar até tarde, solteiro, mora sozinho, não tem muitos amigos. É, na Livraria do Fórum, ali perto da Praça João Mendes, atrás do velho Palácio da Justiça, por isso tem esse nome. Não, não são livros jurídicos, tem uns também, mas é mais um sebo que tem de tudo, livros embolorados, enciclopédias antigas, revistas dos anos 50, tipo Manchete, Cruzeiro, histórias em quadrinhos. Eu teria medo de sair sozinho por ali tarde da noite, tem todo tipo de malucos, alcoólatras, drogados, gente que dorme na rua. Mas ele não ligava, todo mundo saía às seis da tarde, baixavam a porta de ferro, aí ele se aboletava numa poltrona cheia de ácaros, escolhia um livro ao acaso e mergulhava até sentir sono. Só então ia pegar um ônibus na Praça da Bandeira para voltar para sua quitinete na Nove de Julho. Gaspar sempre foi destemido, mais de uma vez uma dessas fi

Lendo meu jornal (EM)

Sentei-me num café da Praça Vermelha, na única vez em que fui a Moscou. Mesmo sem entender patavina, abri solene o Pravda , era um sábado de sol. O rapaz que me servia mostrou discretamente uma notícia e sussurrou, arranhando um espanhol: no túmulo de Stalin foi achado um livro de poesias, era Maiakovski, mas a capa indicava o Capital. Em Paris por sua vez, agora no Café de Flore, também era um sábado de sol, abri encantado o Libération e descobri que tinham visto Jean Genet andando distraído pelas margens do Sena. No Rio de Janeiro, também num sábado de sol, abri o primeiro jornal que encontrei sobre o balcão. No segundo caderno fiquei triste com a manchete: São Sebastião declarou que não volta nunca mais.

DARÍN NUM SÁBADO À NOITE

Foto capturada do site Filo.tón Por SOLANGE REIS Cada um espera o que quiser de um sábado à noite. Eu espero boa companhia, uma taça de vinho, pizza de farinha de couve-flor com dois queijos e um filme com Ricardo Darín. Esse argentino é como sopa quente no inverno. Dá um conforto... Darín é quase feio. Dentes demasiado grandes, cavalares; queixo afunilado; nariz lamentável. Seus olhos azuis e cabeleira farta não bastam para equilibrar o rosto. Com baixa estatura, idade e barriga consolidada, passa longe de ser sexy. Mas aposto que é um grande amante. Que ama com calma e fundo, até a alma se sentir beijada. Uma versão portenha do Chico imaginário. Ele simplesmente me convence de tudo. Mesmo quando o roteiro e a direção derrapam em Kóblic. Ou, então, quando contracena com uma atriz quase alface em Sétimo. Darín é o amigo fiel de Truman; o cidadão atormentado com o Segredo dos Teus Olhos; o ex que desperta Um Amor Inesperado. Darín somos todos nós quando prota

NO TÚMULO DO POETA RENÉ CREVEL (edu)

Um poema em prosa de EDUARDO MUYLAERT Da minha casa na avenue de Chatillon que hoje é a avenue Jean Moulin eu podia ter ido a pé em pouco tempo ao descuidado cemitério de Montrouge Acabei nunca indo procurar — na quadra dezenove o túmulo discreto de uma família burguesa singelo granito rosa onde repousam serenos os restos do inquieto poeta René Crevel Se não dou certo em nada me mato — tinha dito leal, cumpriu a promessa — só mais tarde acabou reconhecido cultuado pranteado como poeta e escritor surrealista A vida teve cheia de intempéries tinha ainda catorze anos quando a mãe que só fazia blasfemar contra o cadáver o arrastou para ver o pai dependurado Sem ilusões. Fazia amor com homens e mulheres vivia com a cruel tuberculose — a peste branca e tinha amigos em diversos sanatórios além do peito, doíam muito os rins e a vida Tinha uma amante argentina, —   Condessa Cuevas de Vera a quem deixou a última mensagem — “Favor

O COLAR DE BETSABÉIA (edu)

  Por — EDUARDO MUYLAERT A primeira vez que o vi, fiquei totalmente fascinado. Eu tinha 26 anos, fazia uma pós em história natural em Nova Iorque, o dinheiro só dava para refeições ligeiras na cantina da faculdade. Uma amiga me mostrou a joia num catálogo, soube que estava, afinal, ao alcance de todo mundo.   Claro, nunca é para “todo mundo”, só para quem pode, e eu, efetivamente, não podia, não naquele bendito ano 2000, mesmo tendo sobrevivido ao “bug do milênio”. O mundo, felizmente, não acabara. Ainda não. A peça parecia, mal comparando, um exótico colar de índios da América Central, mas com um distintivo toque art déco . Eram legítimos tubos de coral, entremeados de contas de turquesa e ônix, tudo combinado com pequenos diamantes, numa corrente de platina e ouro. Nem me   interessei pelo preço, não era para o meu bico mesmo, eu não pertencia àquele mundo. Fiquei me perguntando, porém:   por que uns têm tanto, e outros quase nada? O dinheiro, em si, não me at

ONDE LEIO O MEU JORNAL (Edu)

  por — Eduardo Muylaert Gosto de ler o Globo olhando o mar do Leblon nos quiosques da calçada o coco com muita água invejo os que dão conta de driblar vento e areia ler tranquilos o diário na barraca em pleno sol distraídos nem reparam nos gritos:  — mate leão nos sacos de biscoito globo e nas bundas [e peitos] ao redor Gosto de ler o Guardian no terrasse bar da Tate Modern level 1 do Blavatnik Building depois ver uma exposição [qualquer uma] Em São Paulo tanto faz leio por alto o Estadão [tão cioso] aí mergulho na Folha [que se acha tão moderna] mais importante o expresso [sem falar no pão francês] Em Paris, no terraço de um café o Flore, o Deux Magots, o Tabac da esquina, começo pelo alegre Figaro, leve e conservador, aí ataco o Le Monde, esse sim é de rigor Em Milão, ou mesmo em Roma, sempre o Corriere dela Sera diante de uma bela chiesa a qual encaro de esguelha Agora viajo mais [muito mais] vou