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A COISA NÃO FUNCIONA

 


por — Eduardo Muylaert
 Ela se percebeu um pouco ridícula, a torradeira impassível e ela a olhar desconsolada. Se ele estivesse aqui, dava um jeito, se fosse um celular dava reset. Nunca se conformou, os aparelhos deviam vir em português, é lei, não é? Tostar o pão vem de outra era, mais calorosa. As primeiras máquinas queimavam as pontas dos dedos. Dez anos depois, o pão se pôs a saltar, como a rã do Matsuo Bashô a perturbar as águas do velho tanque com seu furuike ya kawazu tobikomu mizu no oto. Logo mais surgiriam as três maravilhas que moldaram uma civilização: a torradeira automática, o pão de forma em fatias e o breakfast, incluindo ovos com bacon e uma quantidade extraordinária de calorias. Não havia lar sem torradeira na América do século XX. Na casa de Portinari há uma máquina de café expresso, cilindro brilhante de aço com um só pistão. Maria cresceu com o aroma do café passado no coador, a mãe botava bastante açúcar, passou a ver Candinho, o pintor dos pobrinhos, como um precursor requintado. A excursão da escola a Brodósqui foi uma epifania, a coisa só pode ter vindo da Itália, devia fornecer a cafeína necessária ao artista, João não era artista, de pintura não entendia bulhufas, café tomava sempre às pressas. Também não sabia o que era bagel, talvez nunca tivesse prestado atenção na primeira tecla da torradeira. Maria pensou em bago, bagulho, mas descobriu que bagel era um pãozinho redondo, furado no meio, que veio com os imigrantes judeus e foi adotado pelos americanos. Na vida com João nunca houve bagel, mas não faltou farofa.
Cultura não traz felicidade, insistia Dona Santina, mãe de Maria, a que passava o café no coador e depois enchia de açúcar. A filha, por sua vez, adorava fascículos e repetia com ênfase que considerava sua leitura um diferencial. João nunca se interessou pela calota polar, menos ainda pelo aquecimento global ou a camada de ozônio. Gelo só não podia faltar para seu uísque. A tecla defrost sempre provocava arrepios. Maria nunca descongelou nada na torradeira, nem era dada ao luxo de congelados. Mas não podia deixar de lembrar do começo, antes da primeira vez. Na loja de eletrodomésticos, João era o mais bem-apessoado dos vendedores. Sua eloquência encantou, mesmo sem poder Maria comprou a torradeira com a emoção do humano que trouxe o fogo para dentro da caverna. Lareira era para os muito ricos, mas sua casa agora seria um ninho. Ficou na dúvida se João só queria empurrar a torradeira e se tornar o empregado do mês, mas investiu. Timidamente, perguntou se a loja tinha serviço de instalação, se saia caro, mas o solícito balconista logo se prontificou, tinha folga na quarta. Calor inesquecível numa noite de inverno paulistano, pena que a coisa não esteja funcionando.
Fico pensando no que não gostava no João. A torradeira tem um controle, a gente come o pão como quer, escolhe, gira a rodinha, vai do 1 ao 5. Em dias brandos, ligo no 1, fatias quase brancas. Às vezes gosto do integral bem torradinho, entre o 4 e o 5, sim, a máquina aceita meias medidas e posições intermediárias. João nunca se interessou pelo outro, quer dizer, por exemplo, pelo que eu queria. Às vezes parecia uma britadeira descontrolada, depois um urso hibernando, urso é uma boa comparação, com a luz acesa eu tinha um pouco de aflição, costas desaparecendo debaixo de tanto pelo, ficavam lembranças na cama. No lençol tudo bem, mas cabelo grudado no sabonete, aí não dá, raiva danada, que porco. Quando conheci João, camisa branca e gravata, calça preta, sapato lustroso, achei que era categoria, mas era só uniforme da loja, faltava até um pré-molar. O desgraçado, vendo que estava agradando, ainda me convenceu a levar uma garantia estendida, combinou bem com a torradeira, além de cara, bem cara, também não funciona, cara de pau, esse João.
Maria achava que torradeiras são para sempre, apostou nas teclas keep warm , reheat e, na pior das hipóteses, a little longer. Seu lema agora é fica fria, o verão acabou nesse inverno, não dá mais. Num certo sentido, Maria tem razão, pois embora a coisa não funcione, não consegue se livrar dela. Ora com ternura, ora com ódio, ainda olha pensativa para o utensílio, precisa achar outro nome, utensílio pressupõe utilidade, alguma serventia tem que ter para merecer esse nome. Não sei como isso foi acontecer logo comigo. Para compensar, Maria pensou numa máquina de café expresso, está na moda, mais acessível, mas andava meio desconfiada das coisas movidas a eletricidade.
Deus quando fecha uma porta abre uma janela, quem precisa de torradeira, foi na feira do Paraíso que Maria descobriu a nova maravilha, a chapa de fazer tostex, com dois braços que ela podia abrir e fechar ao seu bel prazer e preencher com o pão que lhe aprouvesse e o recheio que lhe desse na telha presunto queijo prato mozarela banana manteiga queijo coalho peito de peru catupiry até mortadela salaminho ou doce de leite. Num mundo em plena crise energética e em que falta água toda semana são três a quatro dias sem encher a caixa não depender da companhia é uma dádiva o gás ainda dá para pagar sem reclamar uns 25 todo mês a luz está mais de 300 com a tal bandeira vermelha e a água quanto mais falta mais a conta sobe. O moço que vendeu fez gracinhas como todo feirante, mas não se insinuou. Maria achou isso elegante, alegria não quer dizer safadeza, pensou em voltar mais vezes.
A tostequeira foi uma espécie de compensação. Maria não conseguia deixar de pensar na frustração da torradeira, mas colocar o ferro no fogo até ficar vermelho e ver um pouquinho do queijo derretido saindo pela fresta e ficando torradinho de tudo era um prazer até então nunca sonhado. A torradeira só podia torrar o pão, parece uma tautologia, mas passar uma manteiga antes da introdução podia causar um estrago considerável. Não pode, dizia João, se derrete alguma coisa aí dentro não tem como limpar e vai ficar queimando e cheirando mal e estragando tudo. O pior era a tal da resistência, a alma do negócio, depois de exibir seus dotes em maravilhosos tons de vermelho, de uma hora para outra adotou um tom cinza de carvão e passou a negar seu calor e sua serventia até então tão promissora.
Juntou gente em volta da caçamba da rua em que Maria morava, felizmente não ficava defronte à sua casa, mais perto da esquina, assim não dava para saber a procedência do lixo. O que primeiro chamou a atenção dos circunstantes e dos mendigos que viviam a catar despojos antes da passagem do caminhão foi uma carcaça de torradeira branca quase imaculada com acabamentos em metal do mais fino brilho com o fio ainda intacto terminando numa tomada de três pinos do mais recente padrão ABNT com o ventre aberto e as tripas expostas, a resistência arrancada aparentemente com violência agora enorme embaralhada em pequenos rolos formando uma maçaroca inextricável a lembrar a promiscuidade daqueles fios verdes de luzinhas de natal depois de guardados sem cuidado de um ano para outro. Ninguém se interessou muito pelo cadáver, mas houve disputa pelos objetos circundantes uma camisa do Santos um pijama de algodão verde com listas amarelas uma calça preta com o fundilho esgarçado um frasco quase vazio de micosan um tubo de xampu anti-caspa uma camisa branca de nylon portando o logotipo de conhecida loja de eletrodomésticos duas gravatas cuidadosamente cindidas ao meio por um objeto cortante não determinado possivelmente uma tesoura um tubo quase vazio de dentifrício colgate duas cuecas bastante usadas uma branca e uma que fora azul um canivete enferrujado um alicate idem e uma chave de fenda quase sem ponta uma sandália rider com a sola quase lisa de tanto uso um pente de cabelo ainda com alguns fios uma escova de dentes com as cerdas em decadência um atraente par de tênis surrado sem os cordões e com um odor remanescente que ainda fazia lembrar o antigo proprietário. Pelo que as pessoas se lembram, tudo isso estava espalhado sem pudor, nudez escancarada, como se estivessem quase que procurando mostrar alguma coisa a alguém. Com a corrida dos interessados, instaurou-se uma espécie de bazar, árduas negociações, quando passou o caminhão só havia sobrado a resistência, pois até a carcaça da torradeira foi levada, depois de aliviada de seus agora inúteis intestinos elétricos.
Naquela manhã, uma vizinha, que se acostumara a ver Maria com ar de tristeza, notou um estranho sorriso no canto de seus lábios.


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