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Anything else I can help you with, ma´am? – parte 3

 


ETEL FROTA



Em Auckland, passo por debaixo do wharenui, o enorme portal da casa comunitária de encontros māori, de onde ressoa um delicado canto feminino de boas-vindas. A viagem foi dura, mas estou na Nova Zelândia, onde tudo sempre dá certo.

Cara a cara com a senhora da imigração, já cheguei me justificando. Sorry, tinha tido problemas no preenchimento da NZeTA, primeiro, e depois na NETD. Fui depositando no balcão o celular aberto no formulário parcialmente preenchido, o certificado de vacinação impresso, o PCR negativo, passaporte. Muito ansiosa, esbarro nas palavras em meu inglês enferrujado pelo confinamento. [Aliás, tenho percebido que enferrujadas estão minhas habilidades de comunicação, mas isto não é assunto para agora.]

Com um sorriso protocolar, ela sequer olhou para meu calhamaço.  Tranquilamente, me estendeu uma folha de papel, um xerox mal ajambrado, onde eu deveria marcar um xis declarando estar vacinada e outro confirmando ter tido um PCR negativo até 48 horas antes de embarcar, além das informações de praxe. Em menos de um minuto devolvi-lhe, assinado. Com o mesmo sorriso, me perguntou “do you have your PIN, ma´am?” Balbuciei um sorry, what PIN? e já ameaçava começar a chorar; ela sopesou a situação por alguns segundos e, resoluta e subversiva, sublinhou o sorriso com uma nota de condescendência e carimbou meu passaporte. “Wellcome to Aotearoa!”

              Perplexa, segui meu caminho. Sobre uma grande lata de lixo, a placa me alertava de que aquela era a minha última chance para descartar um eventual maço de cigarros; caso optasse por permanecer com ele haveria uma taxa de 400 dólares a ser paga logo na sequência. Ao lado do raio X, eu deveria pegar, de um outro barrilzão, um kit com 4 testes para Covid, a serem realizados nos dias 0, 1, 5 e 6. Os resultados deveriam ser informados através de um link que eu receberia em email do Ministério da Saúde.  

Sim, eu estava entrando em Aotearoa, Nova Zelândia. Tudo parecia fluir, finalmente.

Mas havia mais uma-hora-e-vinte-minutos a cumprir, já no fuso horário da Oceania. Foi o tempo que passei ao lado da esteira 5, até me convencer de que minhas malas não estavam ali. Funcionárias solícitas de dois guichês abertos para solucionar problemas com bagagens não puderam me ajudar, já que o guichê que a companhia brasileira que me trouxera divide com a Swissair estava fechado. Éramos umas 8 pessoas na mesma situação, e elas realmente não tinham nada a fazer. Não, não havia tampouco uma administração do aeroporto onde eu pudesse obter alguma informação. “Sorry, ma´am”.

              Com minha mochila e uma frasqueira, resignada, refiz ao contrário o caminho do saguão das esteiras, na direção do desembarque, já que eu tinha que trocar de terminal para mais um voo doméstico, para Wellington. Na passagem, casualmente, encontrei – junto com mais de uma dezena de outras - minhas malas abandonadas entre as esteiras 6 e 7.  

              Cheguei ao terminal doméstico, para a última etapa da viagem, mais um voo de pouco mais de uma hora. O primeiro funcionário da companhia me fez uma longa explicação de motivos, que eu não entendi, para justificar a etiqueta de standby que anexou às minhas malas. Compreendi que, se houvesse espaço no avião, nós – eu e as malas – embarcaríamos. Caso contrário, não entendi o que seria feito de nós. Não tive forças para argumentar que a minha passagem - e a das malas - fora comprada com meses de antecedência, que essa era a etapa final de uma viagem de quase dois dias de duração, que tenho 70 anos, que no meu país eu era uma prioridade ‘por lei’ e que estava viajando sozinha. Não tive ânimo. Segui para meu standby no portão de embarque. Outro funcionário solícito e ultraexplicativo reiterou a mesma coisa. Eu deveria deixar com ele o meu cartão, me sentar e aguardar até ser – ou não – chamada pelo nome. Só não fui a última pessoa a entrar no avião porque embarquei junto com algumas crianças desacompanhadas; fomos todos acomodados por comissárias atenciosas nas duas últimas fileiras de poltronas e tivemos algumas regalias de snacks.

              Corro o risco da incredulidade de quem teve a paciência de acompanhar-me a saga até aqui, desembarcada em Wellington. Mas é necessário complementar. Não, as malas não vieram. Já com a minha filha, cumpri a última uma-hora-e-vinte-minutos ao lado da esteira.

Desta vez, no entanto, não vai ser um mero caos na aviação mundial que vai me derrubar. Tenho a companhia dela para as tratativas no inglês kiwi com o qual demorarei algum tempo para conseguir me comunicar. As malas chegarão amanhã. Até lá terei pijama emprestado, chocolate quente, cafuné e vários momentos de lágrimas nos quais lembraremos que – sobrevividas eu, ela e a irmã - temos e teremos, sempre, umas às outras.  

Algumas considerações pós- finais.

O laboratório irresponsável em São Paulo chama a+/Grupo Fleury. A companhia aérea que me desrespeitou do balcão de checkin em Guarulhos até o guichê fechado em Auckland chama LATAM. Os nomes de Bianca e Anderson são verdadeiros. Os das funcionárias de Santiago, inventados, já que o nível de estresse naquela segunda etapa não mais me permitia checar nomes em crachás. Os de Auckland, nem me passou pela cabeça conferir.

Nem tudo sempre dá certo em Aotearoa, Nova Zelândia.

No final do mês, as exigências sanitárias serão suspensas, mas aparentemente – mesmo aqui – já estão largando os betis, como sugere a atitude carimbatória da sorridente ma´am da imigração e a existência de um formulário destinado a pessoas que não cumpriram direito as burocracias.

Não receberei e-mail nenhum do Ministério da Saúde. Como boa cidadã que sou, entretanto, farei todos os testes, que estarão negativos. No dia 6, minha filha receberá um alerta chamativo no celular, cobrando meus resultados. Ela terá que ligar para um 0800 contando que deu tudo certo e que não informamos antes por falta de canal por onde fazê-lo. Nossa palavra bastará.  

Estou feliz. O que não faz um bom perrengue na vida de uma pessoa.

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