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NO TÚMULO DO POETA RENÉ CREVEL (edu)




Um poema em prosa de EDUARDO MUYLAERT

Da minha casa na avenue de Chatillon
que hoje é a avenue Jean Moulin
eu podia ter ido a pé em pouco tempo
ao descuidado cemitério de Montrouge

Acabei nunca indo procurar — na quadra dezenove
o túmulo discreto de uma família burguesa
singelo granito rosa onde repousam serenos
os restos do inquieto poeta René Crevel

Se não dou certo em nada me mato — tinha dito
leal, cumpriu a promessa — só mais tarde
acabou reconhecido cultuado pranteado
como poeta e escritor surrealista

A vida teve cheia de intempéries
tinha ainda catorze anos quando a mãe
que só fazia blasfemar contra o cadáver
o arrastou para ver o pai dependurado

Sem ilusões. Fazia amor com homens e mulheres
vivia com a cruel tuberculose — a peste branca
e tinha amigos em diversos sanatórios
além do peito, doíam muito os rins e a vida

Tinha uma amante argentina,
 Condessa Cuevas de Vera
a quem deixou a última mensagem
— “Favor me cremar. Desgosto.”

Tinha então 34, era um 18 de junho, terça-feira
ameno fim de primavera na Paris de 35
Hitler em Berlim se comprazia com barbáries
enquanto acariciava seu projeto tão maldito

O poeta foi bem simples e prático
tomou um Veronal e deixou correr o gás
— “il n'était guère enclin à l'optimisme” disseram
um eufemismo bem ao gosto dos franceses

Largou direito e letras na Sorbonne
Comunista, foi expulso do partido
Surrealista, banido do movimento
Dadaísta nunca deixou de ser um pouco

Na véspera à noite, na bela Closerie des Lilas
número 171 do Boulevard de Montparnasse o poeta
se aborreceu com a conversa — tentava sem sucesso
aproximar os militantes e os poetas

Muitos já tinham rompido com Stalin
inconformados com a repressão violenta
as perseguições do regime soviético
o exílio de Trotsky e a ortodoxia do PCF

André Breton estapeara Ilya Ehrenbourg
que no Congresso de Escritores chamou de sodomitas
os aliados surrealistas que foram proibidos de falar
Crevel achava absurda essa briga fratricida

O poeta saiu devastado. Aragon bom amigo o acompanhou
ao 28 da rue Lacretelle onde René morava há uns dois anos
mas nesses dez minutos de caminho Crevel já preparava
a saída — sem apego ao que vivera e sem crença em outra vida.

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