Pular para o conteúdo principal

MINDFULNESS



Por EDUARDO MUYLAERT

— Oi, que bom que você veio!
— Por quê? Você achou que eu não vinha?
— Não, claro que não. É que é a primeira vez que te convido, custei a tomar coragem.
— Por quê? Você pensou que eu ia te dar mole?
— Não, claro que não. Super normal tomar um chope e bater um papo. Só queria te conhecer melhor, afinal estamos sempre com outras pessoas.
— Não estou acostumada com essa coisa de happy hour, sei que é moda, mas sou mais caseira. Não saio muito mesmo.
— Então! As pessoas que não agitam muito costumam ser as mais interessantes. Têm vida própria, pensam por si mesmas.
— Aliás, odeio chope, cerveja, tudo. Pode pedir uma caipirinha de limão para mim, pouco açúcar, muito gelo.
— Vodca ou cachaça?
— Vodca, claro, está me achando com cara de cachaceira?
— Adorei esse seu lenço azul, valoriza o rosto.
— Pode parar, se é para vir com conversa mole, suspende a caipirinha e eu estou indo.
— Não, pelamordedeus, não me leve a mal. Só fiquei impressionado, assim de perto você é ainda mais bonita.
— Pode parar, já falei. E de onde você tirou a ideia desse encontro? Vi que escolheu bem o lugar, o Frevinho, na frente de todo mundo, sem mistérios. Apesar da sua fama de mulherengo.
— Pois é. Sei que o Pedro tem aula de mindfulness nas quartas, achei que era um bom dia. Depois, adoro o Frevinho, não tem beirute igual, e o chope vem sempre na temperatura certa.
— Que assunto você acha que podemos ter em comum? A novela das nove? A bosta do governo? O trabalho da sua mulher?
— Novela não vejo, e do governo não vou falar, posso ter um ataque de raiva. A Vera está bem, trabalha bastante, isso é bom, quando estamos juntos nos damos bem.
— E hoje, onde ela está? Você contou da nossa happy hour?
— A cada quinze dias, também nas quartas, olha que coincidência, ela se encontra com as antigas amigas de colégio. Enchem a cara, falam mal dos maridos, e morrem de rir. Não deu nem tempo de comentar com ela.
— Entendi. Então, vamos falar do quê? Puxa um assunto aí, mostre a que veio.
— Calma, também não é assim. Relaxa, por favor.
— Acho melhor ir embora. Daqui a pouco o Pedro está de volta. Nem comentei nada com ele.  E essa caipirinha já está subindo.
— Tudo bem. Vou na mesma direção. Posso te dar uma carona.
— É? Não vai me chamar para o motel?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

NO TÚMULO DO POETA RENÉ CREVEL (edu)

Um poema em prosa de EDUARDO MUYLAERT Da minha casa na avenue de Chatillon que hoje é a avenue Jean Moulin eu podia ter ido a pé em pouco tempo ao descuidado cemitério de Montrouge Acabei nunca indo procurar — na quadra dezenove o túmulo discreto de uma família burguesa singelo granito rosa onde repousam serenos os restos do inquieto poeta René Crevel Se não dou certo em nada me mato — tinha dito leal, cumpriu a promessa — só mais tarde acabou reconhecido cultuado pranteado como poeta e escritor surrealista A vida teve cheia de intempéries tinha ainda catorze anos quando a mãe que só fazia blasfemar contra o cadáver o arrastou para ver o pai dependurado Sem ilusões. Fazia amor com homens e mulheres vivia com a cruel tuberculose — a peste branca e tinha amigos em diversos sanatórios além do peito, doíam muito os rins e a vida Tinha uma amante argentina, —   Condessa Cuevas de Vera a quem deixou a última mensagem — “Favor

QUARENTENA, DIA 62

Por DANIELA MARTINS 16/5 - QUARENTENA, DIA 62. Com quase 4.700 vidas perdidas, o estado de São Paulo superou a China em número de mortes por Covid-19. O Brasil perdeu hoje mais 816 cidadãos para o vírus. A melancolia do dia frio foi aplacada pela live que rolou num dos terraços do bairro, acompanhada e aplaudida pelos vizinhos. Eu e a Teca acordamos bem cedinho e tomamos café da manhã juntas. Os irmãos mais velhos aproveitaram para dormir até tarde, livres das videoaulas. Fiz arroz de carreteiro para o almoço, enquanto sonhava acordada com um piquenique num gramado qualquer. Fiquei com saudades dos nossos piqueniques deliciosos no Parque da Cidade, em Brasília, e no Jardim Botânico aqui de São Paulo, do meu famoso sanduíche de atum com pepino crocante, que nunca faltava. Parece tudo tão distante agora... Que bom que temos essas pequenas lembranças de dias em que fomos felizes sem nenhuma razão especial... Marcamos uma sessão de cinema na sala e eu preciso ajeitar tudo. Va

Anything else I can help you with, ma´am? – parte 3

  ETEL FROTA Em Auckland, passo por debaixo do wharenui , o enorme portal da casa comunitária de encontros māori, de onde ressoa um delicado canto feminino de boas-vindas. A viagem foi dura, mas estou na Nova Zelândia, onde tudo sempre dá certo. Cara a cara com a senhora da imigração, já cheguei me justificando. Sorry, tinha tido problemas no preenchimento da NZeTA, primeiro, e depois na NETD. Fui depositando no balcão o celular aberto no formulário parcialmente preenchido, o certificado de vacinação impresso, o PCR negativo, passaporte. Muito ansiosa, esbarro nas palavras em meu inglês enferrujado pelo confinamento. [Aliás, tenho percebido que enferrujadas estão minhas habilidades de comunicação, mas isto não é assunto para agora.] Com um sorriso protocolar, ela sequer olhou para meu calhamaço.   Tranquilamente, me estendeu uma folha de papel, um xerox mal ajambrado, onde eu deveria marcar um xis declarando estar vacinada e outro confirmando ter tido um PCR negativo até 48 horas