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Quarentena, ano 2: vivendo com força a distopia

 


Por Daniela Martins

Quando me mudei para Brasília, em janeiro de 2010, havia um clima de alegria no ar, era inegável. O Brasil vivia tempos de mudança social intensa e de muita esperança no futuro. 

Na rampa do Congresso Nacional, que visitei com meus filhos ainda bem pequenos naquela ocasião, alguém havia deixado um recado escrito com batom vermelho: “Valeu, Lula!”. 

Fiquei encantada com aquela irreverência, com aqueles palácios da Praça dos Três Poderes, tão importantes, todos sem muros ou grades, com os garotos descendo as laterais do gramado em folhas de papelão. 

Um ano depois, o país elegia a primeira mulher para a Presidência da República. Nós comemoramos, rodamos a cidade acompanhando o buzinaço alegre dos carros. Eu realmente acreditava que meus filhos veriam um país muito diferente do Brasil da ditadura em que eu cresci. 

Essa certeza começou a mudar com aquele processo vergonhoso de impeachment da Dilma. 

A foto que ilustra este post eu tirei num protesto em maio de 2017. Era um outro Congresso que eu via refletido nas vidraças do Ministério da Saúde, estilhaçado, conflagrado. 

Conhecemos a história que se seguiu e que nos trouxe ao pesadelo que atravessamos hoje. 

Mês passado, voltei a Brasília e me espantei com os prédios públicos da Esplanada todos cercados por grades, uma visão estética, politica e simbolicamente horrível. 

Tive que segurar as lágrimas, achei uma violência enorme ver sobretudo o Congresso Nacional, a “casa do povo”, claramente apartado da sociedade. 

Leio hoje nos jornais que o presidente fará uma demonstração de força amanhã pela manhã, colocando tanques de guerra e lança-mísseis nas ruas (sob alegação de um treinamento) enquanto a Câmara realiza uma votação em que ele deverá ver seus interesses contrariados. 

É esse o país que meus filhos estão vendo, é essa a memória que eles terão de sua juventude. Que absurdo… Que triste… Podemos ser tão melhores! 

Comentários

  1. Pois então, eu assisti a tudo isso também muito estupefato de ver como foi fácil perder tudo aquilo que o Brasil tinha conquistado - e olha que foi ainda bem pouco - num período tão curto de tempo. Que bom poder voltar ao Blogspot e ler um blog tão bem escrito. Parabéns!

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