Por Daniela Martins
Quando fugi do Rio, lá pelos idos de 2010, prometi que só visitaria a cidade durante o inverno. Cumpri a promessa à risca durante a década seguinte, até que quebrei meus votos por amor. Sim, os apaixonados sempre cometem suas loucuras: eis-me no Rio em março, justamente o pior mês.
Caminhava pela Ataulfo de Paiva rumo a Ipanema quando reparei que não havia uma única barata pelas calçadas, nem esmagada, nem seca, nem viva. Quase voltei a amar o Rio, mas logo me dei conta de que algo muito errado estava acontecendo.
Jamais, em meus 46 anos, atravessei calçadas cariocas sem topar com uma barata. O Rio sem baratas é tipo a Andressa Urach virando crente: alguma coisa está fora da ordem, é o prenúncio de que vai dar merda.
Da Praça Antero de Quental até a Nossa Senhora da Paz, contei mais de 20 pessoas vivendo nas ruas e pedindo ajuda para comprar um prato de comida. A situação geral piorou bastante com a pandemia, impossível não enxergar isso.
Entrei na Casa &Vídeo sentindo um arrepio estranho, mesmo com o relógio da calçada marcando 36 graus. "Será que a falta das baratas indica mesmo que vai dar merda? Será que ainda pode piorar?!", eu pensava assustada.
Depois de um ano de pandemia, desgoverno e incertezas, a gente enlouquece um tanto, começa a ver sinais do universo até em baratas.
Acabei rindo de mim mesma e me concentrando nas compras de artigos pra casa nova, já que em São Paulo as lojas estão todas fechadas e eu precisava de inúmeras bobagens que nos fazem falta no dia a dia, como um ralinho de pia e pregadores de roupas.
Na volta, parei para ver o Jardim de Alá, que está abandonado e cheio de lixo. Um biguá mergulhava no lodo e se sacudia ao sol, todo feliz. A síntese do carioca.
Foi na altura da Carlos Góes, quase chegando em casa, que vi o Papai Noel.
Parei, aquilo era inexplicável.
Um rapaz que comia um marmitex sentado num banco da calçada ria furiosamente e pedia "Me dá um emprego de presente, Papai Noel, que eu tenho filho pra criar". Outro garoto olhava pra mim e dizia "O Papai Noel tá bolado, você tá vendo isso?"
Sim, eu estava vendo. Só podia ser no Rio.
As baratas tinham caído fora e o Papai Noel estava andando sem rumo pela calçada, meio siderado, sem responder nada, sem falar com ninguém, no calor apoteótico de uma tarde de março.
Não dava pra prever o tamanho da merda, mas era certo que ela estava chegando.
Enquanto tirava o celular da bolsa para registrar a cena insólita, eu me esforçava para encontrar uma explicação racional que desse conta daquilo. Os feriados de 2021 estavam sendo antecipados para 2020, os governadores queriam juntar tudo com a Semana Santa para obrigar as cidades a um lockdown. Era isso! Papai Noel ficou confuso e escorregou por uma fenda no espaço-tempo, caindo no Leblon...
Foi aí que o bom velhinho desenrolou um cartaz e o pendurou com um barbante no pescoço. Fez-se um breve silêncio até que todos pudéssemos entender o quadro: Papai Noel estava pedindo dinheiro.
Foram-se os sorrisos. Deu merda mesmo.
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