Por Daniela Martins
Desci depois da chuva para ir até a farmácia e acabei dando uma volta no quarteirão. Depois de dias sem colocar o nariz pra fora de casa, é preciso esticar as pernas. Quando dobrei a esquina da Itambé, vinha subindo um catador, desses que recolhem papelão nas ruas, puxando sua carroça.
A carroça era um acontecimento: caixa de som com um rock nas
alturas e uma bandeira dos EUA hasteada, orgulhosa. Até agora tento compreender
a cena... Um novo “empreendedor” de si mesmo? Um trumpista tropical? Um trabalhador
desiludido com seu próprio país? Um amante do rock? Um nascido em 4 de julho?
Não era mesmo fácil de entender.
Mas tá todo mundo meio louco, nem convém ficar buscando
sentido nas coisas atualmente.
O dia já não tinha sido fácil. O sociopata que ocupa a Presidência
havia implementado uma reforma esquisita e trocado seis ministros, entre eles o da Defesa. Na esteira dessa demissão, os comandantes do Exército, da Marinha
e da Aeronáutica colocaram seus cargos à disposição e foram também dispensados. É
a primeira vez que acontece isso na nossa história. O Brasil encena sua metáfora perfeita, uma tropa sem comando. Ainda é nebuloso o cenário por trás de tudo isso, mas é óbvio que bom não está.
Mortes em 24 horas: 3.668. Me lembrei do ano passado, quando
nos assustávamos com o número de mortos por dia na Itália e na Espanha. Hoje,
morrem mais de mil pessoas por dia só no estado de São Paulo. Quem não está com
medo, está doido.
Na semana passada, espirrei e surtei. Peregrinei por quatro
grandes laboratórios tentando fazer um teste PCR para covid. Era sábado, eles
não recolhem amostras. Ou recolhem apenas na unidade da casa do caralho, até as
13 horas.
Me descontrolei de estupefação. Será que isso é possível com
mais de três mil mortes por dia? Não deveríamos ter tendas com testagem no meio
das praças? Não deveríamos estar brigando pela quebra de patente das vacinas?
Consegui fazer a porra do teste, deu negativo.
Além do lockdown, das mortes, do desgoverno e do dia difícil
e quente, o câncer tinha levado o psicanalista Contardo Calligaris, que eu adorava ler. A esta altura, os buracos deixados por tantas
perdas vão virando crateras.
As doenças tradicionais bem que podiam entrar em recesso durante
a pandemia, né? Mas não é assim.
Em algum dos seus textos, Contardo comparou a vida a um circuito de montanha-russa: se você atravessar anestesiado, sem gritos, pavor e risos, terá jogado fora o dinheiro do bilhete.
É verdade muito verdadeira esse "bilete".
Pavor e riso ao mesmo tempo, ninguém disse que seria fácil.
Mas, esperem, aconteceu algo incrível no meio desse desalento todo:
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Peço licença ao poeta, porque, no caso, nasceu um gatinho, não uma flor.
Walter Benjamin, vulgo Waltinho, um filhote SRD, fofo, o tempo todo alegre e gracioso, apenas começando a sua corrida de montanha-russa. E renovando a nossa milésima volta.
É pavor e riso que temos que encarar? Vamos
nessa, que é vida o nome desse negócio.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da
tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
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