Pular para o conteúdo principal

QUARENTENA, ANO 2 - Meu encontro com o Mestre dos Magos

 

Por Daniela Martins

As praias estão novamente desertas, as lojas fechadas, tudo exatamente como há um ano. 

Em março de 2020 o Brasil tinha 165 mortos. No total. 

Em março de 2021 os mortos passam de 3 mil. Por dia.

A sensação é de que estamos vivendo em um looping que piora a cada volta. Em progressão geométrica.

O cenário atual não é bom no mundo inteiro, a pandemia vem e vai em ondas, obrigando os governos a adotar medidas de isolamento e a acelerar a vacinação de suas populações. No Brasil, o quadro é desolador, porque o presidente da República se recusa a liderar as ações de combate à doença.

Pressionado pelo escandaloso número de 300 mil cidadãos mortos, ele se viu obrigado a fazer um pronunciamento à nação ontem à noite. Além de despejar sua costumeira cascata de mentiras, como afirmar que sempre defendeu a compra de vacinas, ele finalmente se solidarizou com a dor das famílias que perderam parentes para a doença.

Depois de um ano. Depois de 300 mil mortos. Depois de ter dito que não podia fazer nada, pois não era coveiro. Depois de ter minimizado os riscos da covid, comparando-os aos de uma gripezinha. Depois de ter incentivado aglomerações despropositadas. Depois de ter questionado a eficácia das máscaras. Depois de ter dito que as vacinas não eram seguras. Depois de ter feito piada sobre os vacinados poderem ser transformados em jacarés. Depois de ter gastado milhões para fabricar e distribuir remédios sem eficácia contra a doença, iludindo a população, vendendo falsas esperanças.

Depois de tanta negligência e irresponsabilidade, ele supõe que vamos acreditar nas palavras ocas do seu discurso. Triste e revoltante termos que passar por isso tudo e ainda sermos tirados de otários pelo mandatário do país. Em que quebrada fomos nos meter!

Depois daquele início da quarentena em nos jogamos numa frenética atividade virtual e tentamos malhar, meditar, fazer reuniões, estudar, confraternizar e nos forçar a produzir muito, tudo via aplicativos, finalmente caímos em um desalento absoluto. Não faz sentido nos empenharmos em nada, porque nada parece ter um propósito real. Vivemos uma espécie de depressão coletiva que, dado o quadro brasileiro, é completamente compreensível.

Fui visitar a minha irmã e os meus sobrinhos hoje cedo e encontrei por lá o Mestre dos Magos. Quem é da minha geração certamente compartilhou a agonia do grupo de amigos eternamente preso em um mundo paralelo, tentando encontrar a saída a cada episódio.

Olhei para a estante e ele estava lá, com aquele sorriso cínico de quem já ia mandar uma charada pra me sacanear. Entendi tudo: o Brasil de hoje é a Caverna do Dragão. A gente enfrenta as batalhas para atravessar cada dia, mas acaba voltando ao ponto inicial. Só que piorado.

A Caverna do Dragão virou um dos maiores enigmas da minha infância, porque a série foi suspensa antes de ter um desfecho. Os meninos teriam ficado presos para sempre? Teriam conseguido fugir, fazer uma revolução contra o Vingador, o vilão que sempre criava obstáculos aos seus avanços? Quem, afinal, era o Mestre dos Magos, que se vendia como solução, mas só ajudava através de estranhos enigmas que sempre acabavam colocando os meninos no caminho do Vingador (terceira via da porra!)?

Lembrei que uma das teorias para a eterna prisão dos jovens naquele mundo horrível era a de que eles estariam todos mortos, vivendo numa espécie de purgatório.

Parece ser o nosso caso, sei lá. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Posse da Vida

                      No banco do meio na fileira à minha frente, um moço lê um livro. Do outro lado do corredor, outro moço e outro livro. Não estou no metrô de Londres. No universo de um voo doméstico brasileiro, em uma manhã de quinta-feira, essa incidência de leitores me chama a atenção. Eu mesma leio, com o laptop aberto. Talvez eu esteja simplesmente procurando significados e comparsas para a sensação de bem-estar deste momento.               Apuro a visão para tentar enxergar algo do livro do moço da frente. Do outro lado do corredor, o outro moço apoiou o dele na mesinha, sublinha trechos com um lápis e de vez em quando para de ler e parece refletir.               Daqui a 72 horas, Lula estará subindo a rampa do Planalto. Voamos rumo a Brasília. Da minha parte, sem medo de ser feli...

UM DIA DE CADA VEZ, o caruncho

Desde há muito tempo aderi aos orgânicos, mas na era pré pandêmica me atinha principalmente às frutas, verduras e legumes. Além disto, desde que meu ninho esvaziou deixei de estocar o que quer que fosse. A pandemia mudou tudo. Descobri um hortifruti sensacional, compra online, entrega em domicílio. E que, além dos vegetais frescos, tem grãos -o melhor milho de pipoca de todos os tempos- açúcar demerara, mel, molho de tomate pronto, farinhas. Aderi entusiasticamente. E cometi a bobagem de comprar mais feijão do que sou capaz de comer. Hoje fui buscar o último pacote para cozinhar. No fundo de uma das caixas de plástico, brancas, em que guardo meus mantimentos, percebi pontinhos pretos. Imaginei que fosse um saquinho de linhaça que tivesse furado. Só que a linhaça se movia, reparando bem. Tirei a caixa de dentro do armário para ver melhor. Minhas amigas, meus amigos, faltam-me recursos narrativos... Conheci caruncho muito bem. Criança bem novinha, morei certa vez em uma casa que tinha mi...

DE PERNAS PARA O AR (Edu)

Por EDUARDO MUYLAERT Joaquim Fernandes era um rapaz tímido, não fazia sucesso com as mulheres, também não era bonito nem feio, talvez um pouco sem graça. Não combinava com carnaval. Nos bailes se tornava um chato, enchia a lata e desandava a falar besteiras, ninguém aguentava. Joaquim não se via enturmado na folia, queria mesmo era ter uma namorada, nem precisava ter beleza ou outras qualidades, só tinha que ter pernas bonitas. Sim, acreditem, essa era a única exigência de Joaquim Fernandes, uma espécie de fetichismo que nunca escondeu. Todos os anos se renovavam as esperanças de Joaquim no caminho do clube Caiçara, o melhor da cidade. Quem sabe dessa vez vai; tinha apostado aos 14, 15, 16 e 17. Agora já era maior de idade, ia jogar todas as fichas. De fato, logo ficou vidrado numa morena não muito grande, nem chegou a reparar no rosto, tão distraído estava com as pernas sinuosas, em tons que tentou definir como uma mistura delicada de sépia, rosa, e um pouco de our...