- Por DANIELA MARTINS
Hoje eu vi, bem ao lado da minha casa, um morador de rua
preparando seu abrigo solitário com pranchas de madeira velhas e papelão.
Fiquei olhando a cena por alguns minutos e vendo o cuidado com que ele arrumava
tudo. Uma lona preta dobrada sobre o carrinho de metal indicava que toda aquela
estrutura seria coberta. Aquele será o seu refúgio solitário para tentar
atravessar uma pandemia que já matou mais de 12 mil pessoas pelo mundo e que
parece estar longe do fim?
Muitas vezes parei para conversar com pessoas em situação de
rua - sou filha de assistente social e aprendi cedo que é preciso enxergar as
pessoas antes dos problemas. Aprendi também que trocar algumas palavras pode
valer tanto quanto o dinheiro em algumas situações. São seres humanos que
passam por inúmeras necessidades e precisam ser ajudados, mas que também gostam
de ser ouvidos, de falar sobre seus cachorros, seus gatos, seus filhos, seus
desejos.
Um morador da Sé já me deu uma aula sobre como acostumar
gatos na coleira. Um rapaz de Brasília me pediu 50 reais com a ressalva de que
não era para comer, era para gastar tudo em bebida, porque ele tinha sido
roubado por seus próprios amigos e precisava ficar muito louco. A gente não
quer só comida, né?
O dono da Princesa e da Duquesa, que mora na Avenida
Paulista, me contou que é mais fácil darem dinheiro para a ração das cadelas do
que para ele, porque cachorro comove. Uma família cheia de crianças pediu uma
caixa de bombons e me convidou para sentar numa calçada de Botafogo para
celebrarmos juntos aquela alegria. Todos nós precisamos de pequenas alegrias
enquanto tentamos lidar com problemas muito maiores.
Mas hoje eu não consegui atravessar a rua e perguntar como
se sentia aquele senhor que preparava seu abrigo. Tive medo de chegar perto,
medo do desgraçado do coronavírus.
Como se já não fôssemos egoístas o suficiente, agora tem uma
porra de um vírus invisível que chegou para legitimar a nossa indiferença e
tirar o último fiapo de humanidade que nos resta.
São Paulo tem algo entre 25 mil e 32 mil pessoas vagando sem
pouso certo pelas ruas. A Prefeitura estima que cerca de 7.000 dessas tenham
mais de 50 anos. É gente que não pode cumprir nem mesmo a mais básica das
recomendações sanitárias: lavar as mãos.
E quando a epidemia chegar nas ruas? E quando alcançar
periferias e favelas, onde a densidade populacional é muito mais alta e os
espaços são pequenos? Qual é o plano para colocar um doente em isolamento numa
casa de um só cômodo, onde também vivem os outros membros da família? Quem está
pensando nisso?
O Brasil está prestes a mostrar ao mundo o resultado de uma
pandemia com séculos de exclusão social.
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