Pular para o conteúdo principal

DEVANEIOS GEL-ALCOOLIZADOS


- Por RICARDO SILVEIRA

Tenho pensado muito sobre essa gelatina benta, o álcool gel.

De tudo que leio e zapeio, a prevenção disponível, além do isolamento social, ainda é lavar as mãos e usar o álcool gel.

Acontece que o álcool gel tem uma vantagem. Você não pode lavar as mãos três centésimos de segundo depois de abrir a porta e pegar seu jornal, por exemplo. Com o álcool gel, dá. Não só dá como é o jeito.

Por isso, desenvolvi certa adoração pela meleca salvadora.

Tenho usado um mantra aqui, cujos direitos de uso estão por mim agora liberados, worldwide: tocou em algo, taca álcool gel. Repeat évribari: tocou em algo, taca álcool gel.

Antes que maledicentes se adiantem: não, não tenho qualquer interesse, a não ser o humanitário, em tal ode geleco-alcoolizada. Meu interesse é que ela se espalhe, literalmente.

Fico aqui, entre uma passadinha e outra desta maravilha nas mãos, pensando em ideias.
Por exemplo.

Os famosos marketplaces da vida bem que podiam isentar o frete na compra de uma determinada quantidade de álcool gel. Não tenho ideia de como isso seria possível, mas acho que seria umas.

Álcool gel também deveria ser encontrado dentro de cada ônibus ou vagão de metrô deste planeta. Não tenho ideia de como isso seria possível, mas acho que seria umas.

Empresas com tecnologia ou capacidade de produzir álcool gel, mesmo que não sendo esta sua razão de existir, deveriam trocar impostos por produção e distribuição do produto, quem sabe até a preço de custo. Não tenho ideia de como isso seria possível, mas tenho certeza de que seria umas.

Pensei até num shopping virtual, o alcoolgel.com, que poderia ser um maravilhoso centro de venda e distribuição on-line, reservado apenas aos produtores com certificação na Anvisa.

Imagine.

Uma 25 de Março pontocom (os leitores da capital paulista irão me entender) disputando consumidores com ofertas e promoções, mantendo viva e saudável a lei de mercado e ainda assim fazendo um bem enorme para a população.

Além de grande efeito sanitário, essa epifania poderia manter vivo algo que parece também ameaçado com a pandemia: a lei do mercado, como hoje a conhecemos.

Escrevo este pobre artigo olhando para meu pote de álcool gel, ainda com quantidade suficiente para sei lá quantos dias, esses dias de insônia em plena luz do dia.

Tenho certeza de que ele olha para mim e pensa lá de dentro de sua gororoba com bolinhas: ah, agora eu sou importante, né desgramado?

Ele tem razão. Só agora dei valor.

Fico pensando em como esse produto poderia chegar a mais gente, de uma forma mais rápida e mais barata, quando tudo indica que será justamente o contrário.

Além de parcas ideias, como as que você acaba de ler, não tenho respostas.

Mas é muito bom já começarmos a levantar as perguntas.

Ah, não esqueça: tocou em algo, taca álcool gel.


Ilustração: Pixabay

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Posse da Vida

                      No banco do meio na fileira à minha frente, um moço lê um livro. Do outro lado do corredor, outro moço e outro livro. Não estou no metrô de Londres. No universo de um voo doméstico brasileiro, em uma manhã de quinta-feira, essa incidência de leitores me chama a atenção. Eu mesma leio, com o laptop aberto. Talvez eu esteja simplesmente procurando significados e comparsas para a sensação de bem-estar deste momento.               Apuro a visão para tentar enxergar algo do livro do moço da frente. Do outro lado do corredor, o outro moço apoiou o dele na mesinha, sublinha trechos com um lápis e de vez em quando para de ler e parece refletir.               Daqui a 72 horas, Lula estará subindo a rampa do Planalto. Voamos rumo a Brasília. Da minha parte, sem medo de ser feli...

UM DIA DE CADA VEZ, o caruncho

Desde há muito tempo aderi aos orgânicos, mas na era pré pandêmica me atinha principalmente às frutas, verduras e legumes. Além disto, desde que meu ninho esvaziou deixei de estocar o que quer que fosse. A pandemia mudou tudo. Descobri um hortifruti sensacional, compra online, entrega em domicílio. E que, além dos vegetais frescos, tem grãos -o melhor milho de pipoca de todos os tempos- açúcar demerara, mel, molho de tomate pronto, farinhas. Aderi entusiasticamente. E cometi a bobagem de comprar mais feijão do que sou capaz de comer. Hoje fui buscar o último pacote para cozinhar. No fundo de uma das caixas de plástico, brancas, em que guardo meus mantimentos, percebi pontinhos pretos. Imaginei que fosse um saquinho de linhaça que tivesse furado. Só que a linhaça se movia, reparando bem. Tirei a caixa de dentro do armário para ver melhor. Minhas amigas, meus amigos, faltam-me recursos narrativos... Conheci caruncho muito bem. Criança bem novinha, morei certa vez em uma casa que tinha mi...

DE PERNAS PARA O AR (Edu)

Por EDUARDO MUYLAERT Joaquim Fernandes era um rapaz tímido, não fazia sucesso com as mulheres, também não era bonito nem feio, talvez um pouco sem graça. Não combinava com carnaval. Nos bailes se tornava um chato, enchia a lata e desandava a falar besteiras, ninguém aguentava. Joaquim não se via enturmado na folia, queria mesmo era ter uma namorada, nem precisava ter beleza ou outras qualidades, só tinha que ter pernas bonitas. Sim, acreditem, essa era a única exigência de Joaquim Fernandes, uma espécie de fetichismo que nunca escondeu. Todos os anos se renovavam as esperanças de Joaquim no caminho do clube Caiçara, o melhor da cidade. Quem sabe dessa vez vai; tinha apostado aos 14, 15, 16 e 17. Agora já era maior de idade, ia jogar todas as fichas. De fato, logo ficou vidrado numa morena não muito grande, nem chegou a reparar no rosto, tão distraído estava com as pernas sinuosas, em tons que tentou definir como uma mistura delicada de sépia, rosa, e um pouco de our...