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UM DIA DE CADA VEZ, o estoque

-Por ETEL FROTA

Batatas, laranjas e embalagens de álcool gel higienizadas e guardadas, começamos por aqui a quarentena. Porteira fechada. A gripe do demonho, aqui, não entra. Se já tiver entrado, daqui não sai para empestear mais ninguém.
Uns 5 anos atrás, eu estaria no limiar culpado da felicidade, com minhas meninas embaixo da asa, sem as noites de espera do barulhinho da chave na fechadura. Bastaria que as mensalidades estivessem em dia, para que as universidades, particulares, onde elas estudavam pensassem no resto. E o resto era mandar os alunos para o lugar mais seguro, cada um na sua casa. Reviveria os tempos felizes, em que não precisava me ocupar com o que estariam “comendo por aí”, já que refeições seriam limitadas à comidinha balanceada da mamãe, em horários combinados. 
[Não que eu seja de comer com hora marcada, aliás, detesto. Mas sempre que houve necessidade de estabelecer comitê doméstico de crise, rolou uma certa ordem. Ressuscitava-se a frase: “isto aqui não é uma democracia, é uma família”. No tempo em que esta frase tinha graça.]
Mas elas já se formaram.
Uma, está longe demais para ser cuidada. Felizmente, em um país cuja Primeira Ministra não tergiversa, não manda recado, não cria confusão. Num país que tem 3 ou 4% da população de imigrantes chineses, mas onde a epidemia vai chegando devagar. A Nova Zelândia, como o mundo todo, vai tomando decisões no dia-a-dia dos conhecimentos adquiridos nas últimas 24 horas. Significa dizer que esta filha, ainda que longe de mamãe, está sendo cuidada com o que de melhor temos para hoje. Obrigada, Jacinda.
A aflição tem sido pela outra. Tendo quitado as mensalidades pontualmente e cumprido o calendário escolar, se graduou em uma universidade privada e ficou trabalhando por lá mesmo. Naquele dia da formatura, deixou de ser receita e passou à coluna de despesas com pessoal. Assim sendo -e na companhia de seus colegas de trabalho- permaneceu até ontem atendendo os estudantes dispensados que, antes de voltarem para casa, davam uma passadinha no atendimento. A universidade esvaziou, há vários dias, e essas pessoas continuaram saindo de casa diariamente, usando transporte público, comendo por aí. À disposição para serem contaminadas ou contaminantes. Não usaram nenhum tipo de proteção, sequer tinham tido a orientação formal de manter as cadeiras do público pagante mais afastadas da mesa. A Globo, o Congresso Nacional e as fronteiras do Mercosul podiam fechar. A escola privada, embora deserta, não.
Minha filha não mora comigo, a quarentena dela foge à minha alçada. No momento em que ela adoecer, sob as penas da lei -já que sou grupo de risco- não poderei cuidar dela e não terei nem novela das 9 para distrair minha angústia. Mas saberei exatamente sob os auspícios de quem o vírus terá chegado.    


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