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A TAL DA CLOROQUINA


- Por J. MARCELO ALVES

Nestes tempos de preocupação com a Covid-19, todo mundo sai procurando informação como pode. Um amigo meu me mandou um áudio outro dia com uma pergunta: cloroquina e fosfato de cloroquina são a mesma coisa? "Me manda aí um parágrafo explicando!" Uma discussão entre leigos em um grupo de WhatsApp dele estava pegando fogo com isso e, sabendo que sou cientista, ele resolveu me perguntar. Não sou químico, e sim biólogo, mas tentei ajudar baseado no pouco de química que estudamos em nossa formação.

A discussão no grupo se devia à notícia da morte de um americano que, junto com sua esposa (ainda internada em estado grave na época da notícia), havia ingerido, acredite se quiser, uma forma de cloroquina encontrada em um produto usado para limpar aquários. Alguns no grupo estavam dizendo que era fosfato de cloroquina, a mesma coisa que o medicamento vendido para controlar malária e que ficou famoso recentemente quando o presidente Trump, em meio a várias mentiras e distorções sobre o assunto, prematuramente louvou as propriedades da droga para combater a Covid-19, levando a uma corrida pelo produto em vários países.

Vários problemas aí, mas vamos por partes.

Antes da química, um ponto mais importante: não tome esse remédio (ou qualquer outro) a menos que tenha orientação médica. O medicamento é tóxico se usado incorretamente. Segundo Marcelo Polacow, vice-presidente do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo, o medicamento "precisa ser prescrito na dosagem correta, no tempo correto, além disso, esse produto pode ser extremamente perigoso [se utilizado da forma incorreta], não pode ser usado por gestante, pode causar comprometimento cardíaco e distúrbio ocular, podendo levar até a cegueira." Tendo deixado isso claro, às minhas pobres opiniões sobre o aspecto químico.

Cloroquina e fosfato de cloroquina não são necessariamente a mesma coisa. Assim como sódio --metal explosivo quando jogado na água, procure vídeos que é muito divertido-- é bem diferente de cloreto de sódio, que é o delicioso sal de cozinha, que é bem diferente de hidróxido de sódio, a soda cáustica da limpeza e aplicações industriais.

Entretanto, química é um negócio complexo, por isso escrevi "não necessariamente" acima. Mesmo dois compostos chamados na mídia de "fosfato de cloroquina" podem ser bem diferentes um do outro, dependendo de se e como o fosfato está ligado à cloroquina (é uma molécula grande, então há várias opções), ou quantos fosfatos há ali. É preciso comparar as fórmulas para saber ao certo se são a mesma coisa, a mesma molécula.

Procurei por alguns remédios que têm a ver com cloroquina e o mais comumente usado hoje no Brasil, sob os nomes Reuquinol ou Plaquinol, é sulfato de hidroxicloroquina --então, apesar de chamarem coloquialmente de "cloroquina", na verdade é ainda mais diferente de algo chamado de "fosfato de cloroquina": é um sulfato e tem um OH (hidroxi) a mais ali em algum lugar da molécula. Isso, em bioquímica, pode fazer a diferença entre a vida e a morte, literalmente.

Há uma formulação mais antiga da "cloroquina", mais tóxica que a atual, que é o difosfato de cloroquina, ou seja, com dois fosfatos envolvidos.

Como é a fórmula do tal produto de limpar aquário, eu não sei. No entanto, só por que supostamente contém algo chamado "fosfato de cloroquina" não quer dizer que seja a mesma coisa, molecularmente, que um outro "fosfato de cloroquina" em outro contexto. De novo, há que comparar as fórmulas.

Sem falar que um produto de limpeza provavelmente não vai conter só a cloroquina ali e muito menos ser fabricado para ter os níveis de pureza e limpeza demandados de um medicamento. Bom senso também ajuda.

Mesmo no caso do remédio comprado na farmácia, vale lembrar: não tome nada sem orientação médica. Não só por poder ser perigoso mas também por nem sabermos ainda se ele realmente funciona contra a Covid-19.

Infelizmente, as evidências de que a hidroxicloroquina possa ajudar contra a Covid-19 ainda são bem preliminares e controversas, devido a vários fatores como a pressa com que os estudos foram conduzidos, o em geral pequeno número de pacientes envolvidos em cada estudo, e assim por diante. Isso é comum em uma situação de emergência, onde se está em uma corrida pela cura, mas pode levar a conclusões incorretas. Estudos recentes, também preliminares, indicam o contrário, que a droga na verdade não só não ajuda como em alguns casos pode até atrapalhar. Ainda assim, baseando-se em declarações irresponsáveis de certas autoridades, muita gente está comprando a droga e se automedicando.

Ainda é cedo para perder a esperança na "cloroquina" e vários estudos maiores e mais robustos estão sendo feitos com ela no Brasil e no exterior. Mas ficam as lições, para esse ou qualquer outro caso. Não se automedique. E aprenda o mínimo de ciência para não cair facilmente na conversa fiada de quem quer vender ilusões.


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