Pular para o conteúdo principal

ESPERAMOS ENQUANTO OS SINOS DOBRAM


- Por SOLANGE REIS

Passagem emitida e apartamento temporário contratado. A Espanha estava três semanas ao alcance das mãos.

Os botões desse lado de cá eram desligados, um a um. Nada mais podia dar errado, e nossa mudança de Sydney para Madri era quase fato consumado.

Já nos víamos, felizes, na sacada de ferro de um apartamento pequeno e barulhento na capital espanhola.

Eu, a reclamar da personalidade dramática das pessoas, do cigarro e do preconceito com vegetarianos. A tropeçar num idioma que não me vem naturalmente. E, claro, a abominar as touradas.

Fora isso, aberta a quase tudo do espírito ibérico. Reis, Dulcineias e Sorollas. De brinde, a Europa no estalar dos dedos.

Ele, confortável naquele que é seu país de alma. Tão à vontade com os ‘esses e jotas’ da língua, que chegaria a confundir os nativos. “¿De qué parte de España eres?” ouviria todos os dias.

Fingindo modéstia, conquistaria com seu sorriso perdulário um povo colonizador. A Espanha o acolheria, por supuesto.

Estava prevista uma pré-temporada em Portugal. Terra de poesia e, por isso, de Pedro. Filho poeta e companheiro.

Não o vemos desde as malfadadas férias de fim de ano nas Filipinas. O tufão que nos ilhou lá, hoje parece tragédia de pinga.

Iríamos de Lisboa ao Algarve para plantar a quietude futura. Voltaríamos a Madri para o último sprint da vida.

Mas no meio do caminho tinha o caos. Primeiro, fecharam as fronteiras espanholas. Depois, as continentais. O número de mortos não para.

O vírus rápido e tenaz não se afoga na travessia do Mediterrâneo, não é trancafiado nem devolvido para terras miseráveis. Segue seu curso mortal-democrata.

Dobram os sinos por tudo. E a Espanha, por ora, nos escapa.


Foto: EFE

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Posse da Vida

                      No banco do meio na fileira à minha frente, um moço lê um livro. Do outro lado do corredor, outro moço e outro livro. Não estou no metrô de Londres. No universo de um voo doméstico brasileiro, em uma manhã de quinta-feira, essa incidência de leitores me chama a atenção. Eu mesma leio, com o laptop aberto. Talvez eu esteja simplesmente procurando significados e comparsas para a sensação de bem-estar deste momento.               Apuro a visão para tentar enxergar algo do livro do moço da frente. Do outro lado do corredor, o outro moço apoiou o dele na mesinha, sublinha trechos com um lápis e de vez em quando para de ler e parece refletir.               Daqui a 72 horas, Lula estará subindo a rampa do Planalto. Voamos rumo a Brasília. Da minha parte, sem medo de ser feli...

Anything else I can help you with, ma´am? – parte 3

  ETEL FROTA Em Auckland, passo por debaixo do wharenui , o enorme portal da casa comunitária de encontros māori, de onde ressoa um delicado canto feminino de boas-vindas. A viagem foi dura, mas estou na Nova Zelândia, onde tudo sempre dá certo. Cara a cara com a senhora da imigração, já cheguei me justificando. Sorry, tinha tido problemas no preenchimento da NZeTA, primeiro, e depois na NETD. Fui depositando no balcão o celular aberto no formulário parcialmente preenchido, o certificado de vacinação impresso, o PCR negativo, passaporte. Muito ansiosa, esbarro nas palavras em meu inglês enferrujado pelo confinamento. [Aliás, tenho percebido que enferrujadas estão minhas habilidades de comunicação, mas isto não é assunto para agora.] Com um sorriso protocolar, ela sequer olhou para meu calhamaço.   Tranquilamente, me estendeu uma folha de papel, um xerox mal ajambrado, onde eu deveria marcar um xis declarando estar vacinada e outro confirmando ter tido um PCR negativo até ...