Pular para o conteúdo principal

O MUNDO DE CABEÇA PARA BAIXO


- Por EDUARDO MUYLAERT

Uma das artimanhas da literatura fantástica é a irrupção do anormal em um mundo aparentemente normal. A descoberta de que nosso mundo pode não estar funcionando bem pode produzir sentimentos de ameaça, medo e angústia.

Para Freud, “tem-se um efeito sinistro quando se apagam os limites entre fantasia e realidade, quando aparece como real diante de nós algo que antes tínhamos como fantástico”.

Nem todo mundo aprecia a literatura fantástica, dos góticos ingleses aos pós-modernos, mas esse gênero tem um enorme público e continua vendendo bem.

O personagem de Kafka acorda transformado num estranho inseto, e a vida prossegue. Você vai tomar o café da manhã e seu falecido avô está comendo uma torrada. Você abre os jornais e descobre que foi reduzido a uma espécie de inseto, que não pode mais sair de casa nem ver seus parentes ou amigos.

O mundo lá fora mudou, o comércio fechou, não há mais bares, restaurantes, lojas, academias. Vendo os jornais da televisão, especialmente aqueles em outras línguas, a sensação é de estarmos vendo um filme de ficção científica, pois evidentemente isso não pode estar acontecendo.

A ficção já havia descrito detalhadamente esse quadro assustador.  Pandemia, um polar de Franck Thilliez, lançado na França em 2015, descreve todas as consequências da propagação de um vírus de gripe, a falta de máscaras, a multiplicação rápida do contágio, a crise hospitalar, as inevitáveis mortes.

A incerteza, afirma ele no livro, é nossa pior inimiga em termos de micróbios. Podemos prever a trajetória de um asteroide, a duração de um eclipse solar, mas uma pandemia é imprevisível.

Thilliez não está sozinho, outros autores também haviam descrito quadros semelhantes, embora talvez não com tanta precisão. É que antes de escrever ele estudou longamente o tema com os maiores especialistas, os pesquisadores do Instituto Pasteur.

Diante do atual quadro absolutamente surpreendente, 96% dos franceses e mais de 70% dos brasileiros aprovam as medidas de confinamento, o que não ocorre sem traumas. Estudo recente publicado na revista General Psychiatry (6 de março) mostra que a epidemia causou sérias ameaças, não só à saúde física dos chineses, como também desencadeou uma série de problemas psicológicos, crises de pânico, ansiedade e depressão.

Cada um de nós confinados vai ter que se prevenir contra esses sintomas. Não basta o álcool gel, é preciso converter o tempo ocioso em algo criativo. Toda pessoa tem uma ambição e uma desculpa. Gostaria de fazer alguma coisa, mas diz não ter tempo. Pode ser leitura, escrita, marcenaria, pintura. O mundo agora nos deu esse tempo.

Os cursos online não faltam, vamos por mãos à obra. Afinal, somos seres humanos ou baratas?




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Posse da Vida

                      No banco do meio na fileira à minha frente, um moço lê um livro. Do outro lado do corredor, outro moço e outro livro. Não estou no metrô de Londres. No universo de um voo doméstico brasileiro, em uma manhã de quinta-feira, essa incidência de leitores me chama a atenção. Eu mesma leio, com o laptop aberto. Talvez eu esteja simplesmente procurando significados e comparsas para a sensação de bem-estar deste momento.               Apuro a visão para tentar enxergar algo do livro do moço da frente. Do outro lado do corredor, o outro moço apoiou o dele na mesinha, sublinha trechos com um lápis e de vez em quando para de ler e parece refletir.               Daqui a 72 horas, Lula estará subindo a rampa do Planalto. Voamos rumo a Brasília. Da minha parte, sem medo de ser feli...

Anything else I can help you with, ma´am? – parte 3

  ETEL FROTA Em Auckland, passo por debaixo do wharenui , o enorme portal da casa comunitária de encontros māori, de onde ressoa um delicado canto feminino de boas-vindas. A viagem foi dura, mas estou na Nova Zelândia, onde tudo sempre dá certo. Cara a cara com a senhora da imigração, já cheguei me justificando. Sorry, tinha tido problemas no preenchimento da NZeTA, primeiro, e depois na NETD. Fui depositando no balcão o celular aberto no formulário parcialmente preenchido, o certificado de vacinação impresso, o PCR negativo, passaporte. Muito ansiosa, esbarro nas palavras em meu inglês enferrujado pelo confinamento. [Aliás, tenho percebido que enferrujadas estão minhas habilidades de comunicação, mas isto não é assunto para agora.] Com um sorriso protocolar, ela sequer olhou para meu calhamaço.   Tranquilamente, me estendeu uma folha de papel, um xerox mal ajambrado, onde eu deveria marcar um xis declarando estar vacinada e outro confirmando ter tido um PCR negativo até ...