Por EDUARDO MUYLAERT
Temos ouvido uma quantidade extraordinária de besteiras a respeito da pandemia de 2020, seja de gente do povo, de acadêmicos e até de chefes de Estado. Mas a ignorância não é prerrogativa contemporânea, Giovanni Bocaccio, no seu Decameron, de 1348 (acabou até virando filme de Pasolini, em 1971), já a denunciava e ironizava.
Tenho conhecido, nessa quarentena, muita gente que, além de culta e inteligente, é também interessante. Entre estes, destaco os estudiosos e cientistas que descem do pedestal e das redomas para conversar conosco. Corrijo, estes que se dignam falar uma língua inteligível e se arriscam a tocar em coisas de interesse comum, em geral não vivem no confinamento da academia e nem moram em cápsulas de falso cristal.
Entre nós, Focassauros, um exemplo é o do professor J. Marcello Alves, que nos explica com simplicidade e competência coisas da ciência que poucos ousam abordar. Lembro também o médico Ricardo K., orgulho da nossa constelação, um dos que mais entende de corona vírus e sabe explicar, afastando algumas heresias.
Mas eu quero falar é de Paula Findlen, muito prazer, descoberta de hoje. Ela é professora de Early Modern Europe (muito chique) e também de história da ciência em Stanford. Entusiasta do Renascimento, ela acha que para entender como a ciência, a medicina e a tecnologia se tornaram hoje tão centrais, é preciso analisar como surgiu o conhecimento científico, além da contribuição das abordagens humanísticas.
O que Bocaccio diria sobre a COVID-19? é o título do provocativo artigo de Paula na Boston Review de 24 de abril de 2020. Para ela a descrição da Peste Negra no Decameron continua sendo um dos relatos mais reflexivos de uma sociedade a respeito de uma pandemia.
Como resume o professor Carlos Eduardo Berriel, na introdução da edição da L&PM Editores do Decameron, enquanto a cidade de Florença explode em degradação física e moral causada pela peste negra, dez jovens retiram-se para uma vila distante onde, contam dez histórias diariamente, durante dez dias. “Toda a vida humana, com seus desencontros, sentimentos, morte e superação, é ali narrada, como num afresco. Vai-se da degradação à elevação. Nada do que é humano lhe é estranho.”
Bocaccio começa por se desculpar por trazer “a dolorosa lembrança da última peste, ..., para todos os que a viram ou que de algum outro modo souberam de seus estragos”, embora acrescente depois que “a mim mesmo desagrada ficar ruminando demoradamente tais misérias”. O ano é 1348, o lugar é Florença.
A situação descrita tem alguma semelhança com a nossa, feitas as devidas adaptações: “Para tratar tais enfermidades não pareciam ter préstimo nem proveito a sabedoria dos médicos e as virtudes da medicina : ao contrário, seja porque a natureza do mal não admitisse tratamento, seja porque a ignorância dos que o tratavam (cujo número era enorme , havendo, além dos cientistas , também mulheres e homens que jamais haviam feito estudo algum de medicina) não permitisse conhecer a sua causa , nem portanto usar o devido remédio, não só eram poucos os que se curavam , como também quase todos morriam nos três dias seguintes ao aparecimento dos sinais acima referidos, uns mais cedo, outros mais tarde, a maioria sem febre alguma ou qualquer outra complicação”.
Paula Findlen constata que conhecemos melhor a praga através das lentes da Peste Negra, o infame surto de peste que atingiu seu pico em meados do século XIV. Pelo menos um terço da população de Florença morreu, inclusive o pai e a madrasta de Bocaccio, que destaca a rapidez com que a confiança se desintegrou quando o equivalente ao distanciamento social do século XIV gerou tensão nas relações até então normais.
Findlen destaca que as atividades comuns se tornaram fonte de enorme ansiedade, por medo da infecção, e que o medo generalizado passou a justificar maus tratos aos setores pobres, bem como aos estrangeiros e desprotegidos da sociedade - aqueles que não podiam se dar ao luxo de fugir. A forte e necessária intervenção do Estado também não era equitativa.
Ainda não se conhecia a teoria do contágio, e abundavam os charlatães prometendo falsos remédios ante o desespero das pessoas. A lição de Bocaccio, segundo a autora, é que entender a doença tornou-se um projeto da sociedade como um todo, não simplesmente daqueles que reivindicavam conhecimentos ou autoridade específicos. Depois dele, os médicos começaram a escrever também.
Giovanni Bocaccio analisou a falta de infraestrutura urbana para responder às necessidades básicas: “comida, roupas, camas para os desalojados da tênue vida cotidiana. (Florença) não conseguiu efetivamente colocar em quarentena, fornecer assistência médica adequada a tantos doentes e moribundos e enterrar os mortos a uma distância segura e sanitária dos vivos”. Daí acaba por estabelecer um plano para evitar futuras pandemias. Também nós precisamos de um plano assim.
Que conselho poderia o escritor da Renascença oferecer hoje, pergunta a professora de Stanford? Uma sociedade em quarentena, com relações sociais tensas e uma economia fragmentada, é fundamentalmente doentia. O que seria necessário para fazer a cidade reviver, ou seja, como restaurar a sensação coletiva de bem-estar que fez a cidade prosperar?
Para Paula Findlen, Boccaccio pode muito bem ser uma das primeiras pessoas a ter articulado, com visão profunda, esse delicado equilíbrio que agora estamos enfrentando - como preservar a vida sem destruir a comunidade em que vivemos.
Quem sabe nossos presidentes ,e alguns ministros, topem ler o Decameron. Ou o artigo de Paula Findlen. Ou mesmo nosso blog dos Focassauros. Eles não têm nada a perder. Ignorância e pretensão nunca fizeram ninguém entrar para a história com boa figura.
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