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ZUM

Por RICARDO SILVEIRA

O que eu tenho vivido nas telas de reunião.
Tenho visto caras que não eram feias e boas almas com sacos lotados.
Tenho ouvido gastura.
Tenho visto pessoas mais gordas e cenhos mais pesados.
Tenho visto sorrisos cansados, que ajudam a cansar o meu, e isso quando há.
Tenho visto gente que prefere ficar atrás da cortina do dark ou do mute.
Tenho ouvido teses sobre isso, até etiqueta sobre isso já tem, mas não consigo montar uma, a minha, a não ser o fato de ver nesse sumiço uma versão da liberdade de expressão que esta tecnologia da reunião remota nos dá.
Tenho visto gente que está ali só a bater seu relógio de ponto.
Tenho visto fundos de tela algo engraçados, mas com um humor que não pega brasa, só fumaça, feito lenha orvalhada.
Tenho visto decorações pálidas no fundo e faces de ainda maior palidez na frente.
Tenho notado mais pontualidade.
Meu mundo pré-covid parecia menos atento a ela.
Tenho notado que se quer começar logo para acabar com o telefardo o quanto antes.
Mas assim que o encontro se abre, parece que a tela vira janela, e é bom que se olhe por ela, quase um respiro sem vento.
Após o enter a câmera refletida na sala coletiva vira espelho e abre um átimo para a auto-estética e para a constatação: que horrível, mãos aos cabelos que é o que dá para arrumar.
O consolo é que a pandemia nos dá a todos um ar de trabalhar num sábado pela manhã, pode reparar.
Isso, todos parecemos estar num sábado cedo, interrompidos por algo que não se faz todo sábado cedo para a maioria: trabalho.
Tenho ouvido que tudo que se fala nessas salas de tela é gravado por alguém que não se conhece.
Mas também tenho visto que pouco se pensa nisso, talvez porque não haja muita importância mesmo.
Tenho ouvido perguntas duras.
Elas, as perguntas, tem sido mais consistentes que as respostas.
A cada novo um, tenho ouvido mais do que falado.
A cada aperto em “sair da reunião”, alívio pelo fim da superposição das falas e da superexposição dos silêncios.
Zum.

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