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QUARENTENA, DIA 50

Por DANIELA MARTINS

04/5 - QUARENTENA, DIA 50. Vi uma cidade de pessoas mascaradas por força da lei. Vi cariocas pedalando, caminhando na orla e até mesmo tomando cerveja de máscaras, porque sempre se dá um jeito pra tudo aqui no Rio.

Da entrada do Vidigal, a vista é de tirar o fôlego, uma beleza que resiste à urbanização eternamente desleixada da Cidade Maravilhosa.

Às minhas costas, casas empilhadas e erguidas sobre uma encosta íngreme desafiam qualquer cálculo de engenharia e a própria lei da gravidade. Nem mesmo a urbanização desleixada chegou ali, mas até pra isso se dá um jeito.

Caminhei até o ponto em que está bloqueada a ciclovia que desabou três vezes e matou duas pessoas. O absurdo do absurdo do absurdo. Estava com os tênis errados e ganhei três bolhas nos pés e uma vontade de chorar.

O coronavírus levou Aldir Blanc, que teve coragem de desafiar a ditadura com versos, que teve coragem de desafiar o tempo e dizer “ele adormece as paixões, eu desperto”.

A letra de “Resposta ao Tempo” foi eternizada pela voz linda da Nana Caymmi, que hoje ocupa esse estranho nicho de artistas apoiadores de um governo que não apoia a arte.

Mas a arte é tão maior do que tudo isso, que a voz de Nana cantando as palavras de Aldir sempre vai emocionar a todos, conservadores e progressistas.

Porque todo mundo ama e deseja que a vida nunca termine. Porque todo mundo vai precisar beber um pouquinho pra ter argumento na hora em que o tempo bater na porta da frente.

Tem doença que só se cura com poesia e duas doses de whisky, não tem cloroquina que dê conta.

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