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A GRANDE SELEÇÃO

Darwin sendo sarcástico em meme que tem circulado ultimamente.


-Por J. MARCELO ALVES

Torço para que não, mas temo que estejamos no meio de um experimento evolutivo natural em larga escala. Se sim, apertem os cintos que a natureza não se importa absolutamente nada com suas cobaias.

Muito se fala hoje na imunidade de rebanho, ou seja, a proteção da população contra uma doença simplesmente porque a maioria dos indivíduos é imune e, portanto, não passa o agente infeccioso para pessoas suscetíveis —efetivamente, essa maioria funciona como um escudo ao redor da pessoa suscetível, diminuindo a chance de encontro com o patógeno. A esperança destes tempos, claro, é que os sobreviventes da Covid-19 desenvolvam tal imunidade.

Até o momento, e como esperado pelo que conhecemos de outros vírus aparentados ao Sars-CoV-2, parece realmente que a imunidade é adquirida e deve nos proteger, talvez por um a três anos. Houve alguns relatos de supostos curados tendo contraído o patógeno novamente, preocupantes dado a escassez de informações sobre essa ameaça que apareceu oficialmente há meros cinco meses. No entanto, as supostas reinfecções parecem ter sido somente erros de diagnóstico, onde fragmentos de vírus mortos foram detectados por testes moleculares muito sensíveis, levando a falsos positivos (ou seja, dizer que a pessoa tem a doença quando não tem).

Por outro lado, será que algumas pessoas adquirem imunidade contra o vírus após serem infectadas mas outras não, ou adquirem imunidade fraca, parcial? Não sabemos ainda, mas é uma possibilidade teórica.

Quantas pessoas simplesmente são refratárias ao vírus, não se infectando mesmo se expostas repetidas vezes a ele? Também não sabemos. Talvez algumas, talvez muitas, talvez nenhuma. É bem possível que haja pessoas que não pegam o Sars-CoV-2, assim com existem pessoas que não pegam o HIV —e isso é uma história fascinante que envolve descendentes dos sobreviventes de outras doenças, neste caso a varíola, embora já se tenha hipotetizado que tivesse sido a Peste Negra: a mesma mutação que protegeu contra uma doença no passado por acaso veio a ser útil contra uma nova doença. Aconteceu, pode acontecer de novo.

Além das questões quanto à imunidade, também temos várias incógnitas quanto aos efeitos da doença em pessoas diferentes.

Um resultado que temos até aqui é que cerca de 80% dos infectados ou não apresentam sintomas ou apresentam sintomas tão leves que poderiam ter sido considerados devidos a outra doença respiratória —ou mesmo não respiratória, como veremos abaixo. Outras, por outro lado, têm doença grave. Por que isso acontece? Não temos ideia nesse caso, embora seja uma coisa que acontece em muitas moléstias: variação na resposta do paciente ao patógeno.

Mais comumente, a Covid-19 ataca os pulmões e leva a sintomas semelhantes aos da gripe. No entanto, há vários relatos de pacientes com sintomas mais atípicos. Além dos sintomas comuns como febre e dores no corpo, o vírus pode atacar sistema digestivo, nervoso, renal, levar a perda de olfato e paladar, atacar o sistema circulatório e afetar a coagulação sanguínea, entre outras alterações. Com qual intensidade e em que combinações essas coisas acontecem, varia para cada paciente. O que leva algumas pessoas a sofrerem certos efeitos e outras não?

É também sabido que o risco de morte por Covid-19 sobe conforme a idade do paciente, aumentando muito para os maiores de 60 anos. Além disso, outras doenças ou condições físicas ou fisiológicas prévias (as já famosas comorbidades) também levam a maior mortalidade. Problemas pulmonares, renais, cardíacos, diabetes e obesidade são alguns desses fatores de risco.

Isso não quer dizer no entanto que os jovens saudáveis estejam totalmente seguros. Embora minoria, morrem pessoas jovens e sem nenhuma comorbidade ou fator de risco conhecidos. Por que esses pacientes estão tendo doença grave e até morrendo, às vezes de maneira aparentemente fulminante? Não fazemos ideia, de novo.

Se alguns indivíduos estiverem sendo protegidos (imunidade, sintomas leves, doença benigna, refratariedade à infecção) por terem certas combinações genéticas, teremos aí matéria bruta para a seleção natural. Especialmente se não aparecer remédio ou vacina eficazes contra a doença e o vírus causador.

A teoria evolutiva diz que quem sobrevive por mais tempo e assim, mais importante, deixa mais descendentes por causa de uma vantagem herdável (ou seja, genética), passa seus genes para a frente em maior quantidade. Com o passar do tempo, os genes responsáveis pelas características que conferem vantagens vão dominar e os que genes que não conferem —ou, ainda pior, trazem desvantagens— vão diminuir em frequência ou mesmo desaparecer.

Isso é seleção natural. Características herdáveis levando a sobrevivência e reprodução diferenciais.

É devido a ela que não há genes na população que levem crianças a morrer aos montes, mas os há, em abundância, que nos façam ter problemas sérios depois de uma certa idade. Para a natureza, se você passou da idade de reproduzir, você é invisível para a seleção natural e não importa mais (mas tem sempre a seleção de parentesco e a "hipótese das avós" para dar uma força aos mais velhos ou aos que não se reproduzem por outros motivos, mas isso é outra história).

Temos consciência de que tais coisas acontecem e temos também, geralmente, compaixão por nossos semelhantes. Interferimos pesadamente no processo de seleção natural com medicina, tecnologias, estruturas sociais e culturais, mas nunca podemos pará-lo completamente. Se correr o vírus pega e se ficar o vírus come —se não esse, um próximo.

Podemos estar vivenciando um daqueles momentos que deveriam aumentar nossa humildade perante o universo. Somos animais, organismos vivos parte da natureza como os outros que tanta gente despreza, e como tais sujeitos às leis da biologia. Não importa o quão espertos e tecnológicos sejamos, a seleção natural sempre vai estar pronta para nos pegar. Se formos estúpidos como certos "líderes" e as pessoas que cada vez mais saem para saracotear pelas ruas e parques sem necessidade realmente urgente, então... aí o meme mais adequado é o dos carregadores de caixão ganenses.

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