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UM LADO BOM? Eduardo Muylaert

(Fragmento da capa de Paranoia, Roberto Piva, IMS)

Por EDUARDO MUYLAERT

Nessa hora de pandemia e desgoverno,
 quando se ouve até falar em ditadura,
não custa lembrar do que acontecia
nos terríveis anos de chumbo.

Esse conto foi originalmente publicado
 em Prêmio Sesc Machado de Assis, 2015.


1.     Quando vieram me buscar eu não estava preparado. Acho que nunca estamos prontos para nada. O amor e a morte, e até algumas coisas bem mais banais, costumam chegar de repente, sem aviso, mesmo quando se sabe que elas são inevitáveis. Pode ser tudo uma questão de tempo; às vezes conseguimos uma prorrogação, como no futebol, mas não dá para fugir do desempate por pênaltis.

2.     Toda pessoa tem um lado bom, mesmo os carrascos. É o que minha avó Mira sempre repetia, quando eu chegava da escola e me queixava de um professor ranzinza ou de um colega provocador. Ao longo da vida, nas situações mais difíceis, ouço a voz doce da Vó Mira sussurrando sua sabedoria no meu ouvido. Quero ver ela achar um lado bom no Darci.

3.     "Tenha medo não, tenha medo não, não tenha medo não, tenha medo não. Nada é pior do que tudo, nada é pior do que tudo. Nem um chão, nem um porão, nem uma prisão, nem uma solidão... Nada é pior do que tudo que você já tem no seu coração mudo..."

4.     Nunca fui ligado em política, mas fiquei arrepiado quando ouvi Elis, grávida de 7 meses, cantando Não tenha medo. Caetano estava exilado em Londres e mandou para ela. As palmas do show no Canecão, nesse abril esquisito de 1970, ainda ecoavam em mim. A censura burra deixou passar. E Caetano perdoou, pois Elis falara muito mal do tropicalismo. Não vou perdoar nada, nunca. Não consigo.

5.     No Natal fui ver a família em São João del Rei. A vó Mira não estava mais lá, mas o pai e a mãe me agradaram muito. Eu tinha ficado um ano na Itália, vendo as coisas pelas cartas da família. Não, eu não era exilado, mas era como se fosse, pois estava cercado de amigos que não podiam voltar e que relatavam horrores que a imprensa não podia contar. Sempre fiquei pensando se tudo aquilo era verdade.

6.     Fui anotando os nomes no meu caderno, sempre quis escrever sobre minha região. Depois do Ribeirão Cala Boca vem o Rio Acima, antes do Ribeirão das Mortes. Tem o Córrego Pedra, escrevi ao lado, meio sem pensar, Carrego Pedra. Depois tem São Sebastião da Vitória e Nazareno, o Salvador. Na Fernão Dias, depois de Atibaia, vem o túnel da Mata Fria, adoro esse nome. As palavras anotadas no meu rascunho podem ter sido mal interpretadas.

7.     Nunca me dei bem com Joana, não sei por que casei com ela. A família não gostava. Joana dormiu durante todo o Ano Passado em Marienbad, no meu Cine Coral, o Jânio já tinha renunciado. Eu não gostava dos filmes do Glauber e nem da turma do Belas Artes, que atravessava a Consolação e ia beber no Riviera. Aquela mistura de política, cerveja e putaria me enlouquecia.  

8.     Minha passagem era para o domingo, 15 de novembro de 1968, feriado da proclamação. Na sexta, o pessoal organizou um bota-fora na casa do Pedro Armando. Chope, um barril, cachorro-quente, coxinhas e empadinhas. Tinha uísque também, duas garrafas de J&B, contrabando com certeza. Todo mundo comprava, mas não deixava de ser contra a lei.

9.     Lembro perfeitamente, tocava With A Little Help From My Friends, de Lennon e McCartney, na voz de Joe Cocker. Por volta de dez da noite, Zé Quirino entrou na sala lívido, com um rádio de pilha perto do ouvido, parou a fita cassette e disse, num tom melodramático: - Deu merda! O Gaminha, ministro da Justiça, tinha feito uma rápida introdução e o locutor oficial da presidência, Alberto Curi, lia por longos 18 minutos o chamado AI-5.

10.   Merda mesmo, disse eu, bem na hora da minha festa. Aí ele explicou que não havia mais liberdades públicas, que qualquer um de nós podia ser preso sem ter a quem recorrer, pois estava suspenso o habeas corpus, que a imprensa não podia mais se expressar livremente. E que, na opinião dele, a ditadura ia endurecer e se arrastar por muito tempo. Mesmo assim, achei que não era comigo, pus um disco da Dalida e determinei: A festa continua!

11.  Jânio Quadros tomou posse como presidente em janeiro de 61 e renunciou em agosto, o mês do desgosto. Meus pais tinham feito a campanha do “Varre, varre, vasssourinha”, achavam que iam botar ordem no País. Eu tinha 17 anos e ainda morava em São João Del Rei. O pai torceu para não darem posse ao Jango, que estava na China. Eu estava pensando em passar de ano e não achava nada.

12.  A Vó Mira admirava o Juscelino, quando inauguraram Brasília, em 1960, ela separou para mim a edição especial da revista Manchete, enrolada e amarrada com uma fita vermelha, e disse meu filho guarda essa revista, um dia ela vai ter muito valor. O pai e a mãe não esconderam o ufanismo mineiro, quando o general Mourão botou as tropas em marcha em 1964. Mas eu já estava em São Paulo.

13.  Entrei na Casper Líbero em 63, os estudantes de jornalismo, em sua maioria, apoiavam as reformas de base e acreditavam num País mais justo. Alguns ficavam pouco à vontade, mas não era como no Mackenzie.

14.   No dia 2 de abril de 64, cena inesquecível, eu estava jantando com um colega de classe que morava  num casarão, com a família toda, gente da universidade. O irmão dele começou a provocar, e agora, agora que sim, quero ver o que os esquerdinhas vão fazer, até que ele perdeu a cabeça, agarrou uma faca e começou a correr atrás do irmão em volta da mesa.  O mais velho corria e continuava a debochar, até que o patriarca deu um bufo e mandou todo mundo sentar e comer.

15.   Joana me deixou no final de 67, estava namorando um colega da Maria Antônia, depois de ter engravidado de um terceiro. Minha família nunca soube disso, mas eu achei que nada de pior podia me acontecer.

16.  1969 foi um ano muito carregado, como eu percebia pelas notícias lacônicas que a família mandava. Em setembro foi o sequestro do embaixador americano, em novembro a morte do Marighela. Eles nunca tomaram partido, estavam horrorizados e às vezes enfiavam um recorte de jornal no meio da carta. Comentários só sobre a saúde do pai, a saudade da vó Mira, o dinheiro pouco, dizia-se que as cartas eram abertas.

17.  Não pude vir para o enterro, o dinheiro era pouco mesmo. Foi a Vó que me deu a viagem, ela disse meu filho, vá ver Vicenza por mim, eu não vou conseguir. Ela tinha percebido que eu estava meio perdido, precisando de uma saída. Eu devia mas era ter ficado na Itália.

18.   Adorei o Veneto, a cidade da Vó Mira ficava entre Torino e Trieste, uma cidade pequena, mas com uma arquitetura muito especial e, melhor, a meia hora de Veneza. Conheci também Milão e Roma, mas  passei a maior parte do tempo em Bolonha, fazendo um curso de jornalismo cultural.  Ela chegou ao Rio Grande do Sul nos anos 30, mas o marido preferiu Minas.

19.  Foi no início do ano que tudo começou. Eram dois moços educados. Um mulato corpulento, cheio de mesuras, e um baixo e atarracado, que se achava engraçado. Eram do Terceiro Distrito, da rua Aurora, cujo maior movimento era a recolha de putas e travestis na madrugada. Perguntaram se eu tinha arma, e eu expliquei que estava limpo, tinha deixado o estilingue e o canivete na fazenda, em  Santa Cruz de Minas.

20.  Quando perguntaram cadê a erva, respondi que não tinha dinheiro algum, era estagiário no Popular da Tarde, concorrente da Gazeta Esportiva, e mal tinha uns trocados para a condução. Fiquei olhando quando disseram que estavam atrás de diamba e pixicata, nunca tinha ouvido aquelas palavras. Até aí estava tudo bem, pediram para dar uma olhada nas minhas coisas. Sem problema.

21.  O André, do 301, puxava fumo. A velha do 401, que ficava bem em cima, desconfiava, mas nunca tinha visto; não querendo deixar barato (sem trocadilho), fez uma denúncia anônima. Ela achava o André um santinho e implicava comigo.

22.    “Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel anjos deixados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas privadas cérebros sulcados de acenos     os veterinários passam lentos lendo Dom Casmurro    há jovens pederastas embebidos em lilás     e putas com a noite passeando em torno de suas unhas ...”

23.  Meu pai era veterinário, mas não exercia: ele cuidava das suas vacas de leite, com quem se entendia melhor do que comigo; acho que tinha lido Dom Casmurro. O tira mais baixo abriu um livro do Roberto Piva,  que catou na estante, atraído pelo título Paranóia, e lia em tom de deboche. O grandão tirou da mão dele, que merda é essa, e começou a folhear.

24.  Na ordem de serviço ele escreveu, num garrancho que custei a entender, que o livro, além de ofender a moral e os bons costumes, tinha numa página sem número, que vinha depois de outra sem número, que vinha depois da 47, uma fotografia contendo os dizeres “Eu sou o comunismo”.

25.  Expliquei que o livro nem era meu, alguém tinha emprestado a Joana, antes da separação, e ela não devolveu, mas não era roubo, o livro estava à disposição do dono, e eu nem tinha lido, e nem sabia do que se tratava.

26.  Só consegui ver que aquilo era uma foto do Wesley Duke Lee, artista plástico até conservador, e que não queria dizer nada. Melhor ir explicar lá no Distrito, disseram, e levaram o livro, meus cadernos, e eu que, por cortesia, fui sentado no banco da frente do Fusca branco e preto.

27.  O Delegado estava atarantado e não se interessou, só disse, coisa de comunismo, leva para o Casarão. Dessa vez já fui no banco de trás, mas sem algemas, até o prédio de tijolos vermelhos da Praça General Osório, perto da Estação da Luz. Lá nem deixaram os dois investigadores passar da portaria, me levaram para uma sala e me revistaram todo, com maus modos.

28.  De cara me identificaram, tiraram as impressões digitais com uma tinta que parecia graxa, difícil de limpar, fotos de frente e de perfil. Primeiro rasparam o meu cabelo, depois me levaram à frente de um homem de terno que queria saber quem era a mulher na foto que eu tinha na carteira.

29.  Não tive coragem de jogar fora o retrato de Joana, apesar de tudo. Com vergonha de dizer que era a ex, a que tinha me largado, inventei que era uma amiga. Aí me mostraram uma foto bem escura, eu lembrei que foi no Bierhalle, em Santo Amaro, ainda estávamos juntos, e fomos tomar chope com uns amigos; na mesa havia um jornalista do Zero Hora, muito simpático, que parecia apaixonado.

30.  Não senhor, não sei de quem se trata, não conheço mesmo. Acho que é amigo, ou conhecido, de algum amigo. Soube então que ele havia sido trocado pelo embaixador americano, eu tinha tomado chope com um subversivo, e não fazia ideia. Leva para o 36, disse o homem (era assim que chamavam o Distrito da rua Tutóia que servia de porta de entrada para o Doi-Codi). Lá ele vai explicar essa história.

31.  Certa vez, eu devia ter uns dez anos, meu pai me levou no trem fantasma. Era a época do IV Centenário, e havia dois grandes parques de diversão em São Paulo, onde fomos ver os festejos. Um ficava no Ibirapuera, que estavam inaugurando com grande pompa, e o outro era o Parque Shangai, perto do Parque D. Pedro. Era um mundo fascinante, adorei os carrinhos bate-bate e o rotor, um cilindro gigante, a gente entrava nele, começava a rodar, enquanto o fundo ia abaixando. É como se eu estivesse voando, grudado na parede, mas não tive medo, e o pai explicou que era a força centrífuga, que eu ia aprender mais tarde na escola. Já o trem fantasma não gostei nada, o vagão corria num túnel escuro e era um susto atrás do outro, caveiras, monstros, mortos-vivos, piscar de luzes, assombrações. Fiz força para não gritar e não chorar, mas quando saí tinha os lábios trêmulos e a perna bamba. Tentei disfarçar, não consegui muito bem, pois o pai me deu a mão e me abraçou forte, o que não era normal. Ao longo da vida voltei muitas vezes àquele trem fantasma, sempre em pesadelos dos quais conseguia acordar.

32.  Não cheguei a frequentar o chiqueirinho do Terceiro Distrito, mas só de passar perto fiquei enjoado com o odor de creolina que não conseguia disfarçar o cheiro nauseabundo de cadeia. Perto do que eu conheci depois, aquele ambiente parecia um colégio de freiras. Mesmo encapuzado, eu sabia que o 36 ficava na rua Tutóia, pois Joana morava na Vila Mariana, perto do Biológico. No tempo de namoro, ficávamos no terraço da frente, vendo passar em formação os cadetes do quartel ou da temível Polícia do Exército; daquele ângulo, parecia um bando de carneirinhos seguindo submissos o tenente ou o capitão, vai ver que era um sargento, sei lá, todos entoando cânticos bem ritmados, que me faziam lembrar os escravos de Jó. Mesmo trancado numa sala escura, depois, eu reconhecia o som das botas batendo na Manoel da Nóbrega, a partir das seis da manhã. Qual polícia, qual nada, eu estava é em área militar.

33.   Para um estagiário do Popular da Tarde, as academias de letras eram um mundo distante. Foi, assim, com certo espanto que ouvi o homem dizendo pega esse imbecil e leva para a Academia Paulista de Letras. Mais um que achou uma merda o livro do Piva, mandou jogar no lixo. Queria saber em que circunstâncias tinha morrido o atual companheiro de Joana, eu nem sabia que ele tinha se matado, só sabia que estudava na Maria Antônia. Assegurei que não sabia nem o nome dele e que, apesar da natural antipatia, eu nunca faria mal a uma mosca.

34.  Quando tiraram o capuz e me empurraram para dentro daquela sala fétida, me senti no trem fantasma de novo, só que não tinha o pai para segurar na minha mão. “Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate”, o inferno de Dante devia ser mais acolhedor, não conseguia entender o que estava fazendo ali, nem quem era aquela gente.

35.  "O estresse ocorre quando condições adversas produzem respostas fisiológicas no indivíduo. Poder controlar ou não a situação de estresse depende dos mecanismos dos quais o animal dispõe para lidar com o desafio, e da atitude que cada indivíduo tem sobre a situação. Quanto menor for o controle sobre a situação que está causando o estresse, mais intensa será a resposta a este." Foram frases que recortei de um  artigo da Professora Ekaterina Akimovna B. Rivera, um  estudo sobre o Estresse em Animais de Laboratório. Eu estava cansado dos bastidores do futebol, já quase tinha perdido as esperanças de escrever sobre cinema, assunto desprezado no jornal. Tentando sair da modorra, quem sabe ter uma chance, rascunhei um artigo sobre a preparação dos atletas para a Copa do Mundo, se a concentração ainda fazia sentido, se um bando de homens sem sexo jogariam um futebol melhor, e se as escapadas eram inevitáveis. Meu editor jogou direto no lixo, na minha cara, só faltou cuspir em mim.

36.  No começo, acharam que eu era um dedo-duro, um infiltrado, em busca de informações. Eu não tinha o biótipo, nem estava machucado; acho que os milicos, diante da minha insignificância, tinham me tratado com alguma condescendência, sem saber direito o que fazer comigo. Ninguém ali conhecia o Popular da Tarde, a popularidade, aliás, passava longe daquela cela. Era como se quase todos se conhecessem, ou se reconhecessem, e consideravam um péssimo indicativo que eu não tivesse a menor ideia de quem eles eram e nem o que faziam. Gente esquisita.

37.  Tem um que fica encostado na grade, fumando, com cara de saco cheio, achando que vai sair fácil sair do que chama de grande mal entendido, que alguém vai quebrar o galho dele. Tem um tão fodido quanto eu, acho que é estudante da USP, o que por si só já o credencia a tomar porrada. Se apega a um pulôver  velho como se fosse o santo sudário e divide o sabonete com os outros. Tem um gay musculoso, o Guto, é melhor não mexer com ele. Diz que não gosta de comunistas, que são preconceituosos, mandaram ele calar a boca. Chora muito, e diz que houve uma traição na sua família, uma sacanagem. O que chamam de Digão diz que é inglês, deve ser um disfarce. Declara que desmaia quando toma choques, assim não sente nada, mas voltou nu e todo mijado. Tem um que vê baratas em todo canto, talvez já esteja delirando. Um coitado fica deitado e geme o tempo todo. Tem um medroso e apaixonado, lembra um trovador medieval pensando na sua Leonora.  O João Alexandrino parece operário, é falador como todo cearense, mora no Pari e fuma Continental sem filtro. Na verdade é jornalista, foi quem sacou que os outros eram quase todos escritores, e também que tinham um certo desprezo pelos jornalistas. Entre os escribas, havia mais desdém do que consideração, era como se cada um se colocasse no alto de uma grande árvore e procurasse situar os outros nos galhos de baixo, ou mesmo no chão.

38.  Pouco se falava de livros, só um rapazinho novo, também do Nordeste, que publicou um no ano passado e também não sabe por que veio parar aqui.  Outro fodido é o professor, João, que bebia e apanhou da mulher, o retiro é capaz de lhe fazer bem. Era tanta gente que posso estar trocando as bolas, as conversas eram um pouco cifradas, tinham pena de quem apanhava, mas aparentemente não havia nenhum herói na nossa cela, nenhuma grande história. Uma sucessão de fracassos, isso sim, em nome de uma causa nobre ou de uma suposta vocação literária. Com certeza não havia nenhum Graciliano por ali, e o melhor da turma, na minha opinião, eram o estudante pobre e os dois jornalistas de merda.

39.  Vó Mira, que estais no céu, olhai por nós, perdedores, e atrasai a hora da nossa morte, amém. O que nos unia era a derrota. Depois dos fiascos de 1950 e de 1966, o Brasil se preparava para tentar o Tri, no México, a partir de maio. Num jornal como o Popular da Tarde, era a ocasião da minha vida. Contávamos com o Pelé para a tarefa, e eu não estava nem aí se o Médici ia usar isso a favor da ditadura. Meu negócio era cinema, mas os fracassados não escolhem o local e nem as armas para o duelo. E eu aqui, acho que já estava despedido, ia perder a droga do salário, mas também a única oportunidade que tive de me sentir um jornalista, essa raça aqui considerada inferior, nem tive coragem de contar que era apenas estagiário. Ainda por cima, ninguém me batia, e eu era, cada vez mais, olhado com desconfiança. Quando eu chegava perto de um grupo, logo mudavam de assunto. Uma noite em que achavam que eu dormia, ouvi um dos malucos dizendo que um dia a coisa muda, ou vira pelas armas ou vira pelo voto, mas ainda vamos mandar nesse País. Alguém sussurrou voto porra nenhuma, nunca vai haver democracia no Brasil, tem que ser é na marra. Outro ponderou que a luta armada estava indo para a cucuia, e que não era um bando de escritores, sem grana e sem prêmios, que ia salvar a pátria,  o que provocou imediata indisposição e quase bateram nele, menos pela crítica franca à guerrilha do que pela recusa em proclamar a grandeza de cada um dos companheiros. Algum mérito deviam ter, para juntarem todos no mesmo calabouço , e para tentarem obter informações que aparentemente ninguém tinha.

40.  Comecei a torcer para que me batessem, ao menos uma vez, para não me sentir tão mal. Ficava nauseado, mas também invejoso, cada vez que jogavam um de volta, parecendo o Nazareno retirado da cruz. Se fosse gente perigosa, já teriam matado, não foram poucos os que morreram ou desapareceram depois de serem levados para trás daqueles portões verdes que sempre estiveram ali, impávidos, no pacato bairro da Vila Mariana que, se já foi mais aristocrático, nunca perdeu o ar de  família.

41.  Nazareno, Mata Fria, Cala Boca, Mortes, Pedra, Inconfidentes, tentava refazer o caminho de volta para casa, mas já não sabia a ordem. Comecei a achar que Joana também podia ter morrido, fiquei pensando se era minha culpa. Dos companheiros, já não sabia quem era o gay e quem era o estudante, e se eram a mesma pessoa, e quem era jornalista e quem era escritor. Nunca tinha ouvido aqueles nomes, não que eu seja formado em letras, deviam ser apenas militantes obscuros de alguma facção clandestina, talvez do velho e inofensivo partidão. Ou gente burra como eu, que foi parar ali sem saber nem por quê.

42.  Acho que não estou aguentando, comecei a estressar. À noite sonho que estou apanhando, tomando choques, quando sou trazido de volta os outros me abraçam, cuidam de mim, me chamam de irmão. Uma noite o Presidente Médici e o Marcos, meu editor, vieram conversar comigo, e eu, burro como sempre, chamei os dois de filha-da-puta, desse jeito não saio nunca mais desse purgatório, pois o inferno, agora tenho certeza, são os outros.

43.  Por mais insignificante que seja, essa é a minha história. Não sei o que vai me acontecer, se saio vivo ou desapareço, tanto faz.  As marcas são definitivas, mesmo não tendo apanhado. Juro que não sou espia, ou traidor. Também juro que nunca falei nada, até porque não sei de nada, a não ser que, pela primeira vez, vamos poder ver os jogos da Copa na televisão colorida, isso é, quem tiver grana para comprar, inclusive a antena, a antiga não pega. Também dá para ver as jogadas de Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé e Rivelino em branco e preto, quem não estiver preso, claro, e, principalmente, os que não tiverem morrido até lá.

44.   Lanterninha de cinema, se eu sair dessa quero ser lanterninha de cinema. Dá para ver todos os filmes, muitas e muitas vezes, e nunca mais escrever uma linha, nem falar de futebol, nem contar para ninguém o que vi e o que passei.

45.   Vou ficar elegante, magro, no jaleco com os botões dourados, lanterna na mão, pilhas novas, ajudando as pessoas a se orientar no escuro, a achar um bom lugar. Afinal, todo mundo tem um lado bom, né Vó? Quem sabe a bilheteira, ou a moça da bombonière, me entendam, sem eu ter que falar nada?






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