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EROTISMO E VIOLÊNCIA NA FOTOGRAFIA



Por EDUARDO MUYLAERT


 O menino mostra uma mulher nua para o irmãozinho. Gosto muito dessa foto de Alécio de Andrade (1938 – 2003), capa de seu livro sobre o Museu do Louvre, em Paris. O ano é 1990 e as crianças são seus filhos Balthazar e Florêncio. O mais velho, pequeno e elegante de calças curtas e suspensório, aponta para A Grande Odalisca (1814), de Ingres. O braço esquerdo, apoiado no ombro do menor, transmite cumplicidade e proteção. O direito, esticado, conduz o olhar. Podem estar apenas apreciando a beleza clássica do nu, mas a sugestão é de curiosidade.
O erotismo tem tudo a ver com curiosidade, com o mistério que vem dessas sensações fortes que nos impulsionam para além das proibições. A palavra grega Eros, que designa o deus do amor, que Roma transformou em Cupido, é uma redução de erasthai, verbo que indica o desejo irreprimível dos sentidos.
Por mais que o corpo esteja exposto, cada vez mais exposto, ele continua a nos provocar. O erotismo é inerente ao ser humano, que atribui à sexualidade o sentido de busca do prazer, não sem conflitos.
Na fotografia, o erotismo tem inúmeros registros. Comparando com a literatura, vai de Vinícius de Moraes ao marques de Sade, passando por 50 Tons e Santo Agostinho. Pode ser explícito, como pode ser alusivo. Lewis Carroll, conta Deleuze, aconselhava aos tímidos deixar em branco algumas palavras nas cartas que escrevem... Ou colocar palavras indeterminadas, como “coisa”, por exemplo.
Na grande enciclopédia do século XVIII, de Diderot, a poesia erótica, comum na França, conteria pensamentos elegantes, sentimentos delicados, imagens doces, estilo leve e versos fáceis: só o coração fala na arte erótica, é na alusão que está sua elegância.
Por outro lado, ainda na mesma Enciclopédia, erótico designa o amor dos sexos, especialmente o delírio causado pelo desregramento, o excesso de apetite corporal, que faz ver o objeto da paixão como soberano bem, e produz o desejo ardente de se unir a ele: é uma espécie de afecção melancólica, uma verdadeira doença, é o chamado amor insanus. Nessa linhagem, o erótico foi objeto de grande censura, ao longo da história, com prisões, condenações, queima de obras. E, de algum modo, continua sendo observado com suspeita.
Foi o surrealismo que tirou o caráter pejorativo do erotismo na arte, com sua bela e rica definição: cerimônia faustosa num subterrâneo. Man Ray, muito ligado aos surrealistas, explorou como ninguém a sensualidade do corpo feminino.
E o corpo masculino? Exposto nu nas esculturas gregas e romanas, custou a ser assimilado pela fotografia, arte que só foi reconhecida e incorporada pelos museus e pela universidade nos anos 70. Nessa época, temas que até hoje são um desafio foram francamente abordados, mas não sem escândalo. Diane Arbus, que se suicidou em 1971, deixou o conforto do mundo da moda para explorar a miséria da condição humana, os deficientes, os desajustados, os freaks. Robert Mapplethorpe, fotógrafo branco e homossexual, chocou a América com seus corpos esculturais de homens,  especialmente negros, causando escândalo quando expôs um branco sexualmente submetido a um negro.
Francesca Woodman, ítalo-americana que se matou aos 22 anos, em 1981, deixou um trabalho magnífico e despudorado sobre o corpo feminino, especialmente seus autorretratos. Nan Goldin publicou em 1986 sua Balada da Dependência Sexual, descrevendo o universo punk em que vivia, a morte dos amigos e sua intimidade com sexo, drogas e violência.  Enquanto isso a Justiça, no mundo todo, continua sem saber muito bem como lidar com o problema da violência, das drogas, do gênero, da igualdade, do preconceito, da integração social e tantos outros.
Há hoje uma enorme procura por sexo na internet, o que inspirou um trabalho de Thomas Ruff. O livro esgotado, Nudes, tem texto de Michel Houellebecq e traz imagens lindíssimas construídas a partir de cenas de filmes pornográficos baixados na internet. Entre esses que tiveram a coragem e ousadia de viver a sua obra, de mergulhar nos prostíbulos e nos pardieiros, estão Nobuyoshi Araki e Miguel Rio Branco, além do também consagrado Antoine d'Agata.
Ele afirma “ter procurado viver com aqueles que, até então, a fotografia se tinha contentado de ver. Ter tentado dizer o que não foi dito: que não é aceitável que o fotógrafo seja apenas um voyeur. Ter tentado ver o que não foi visto. Ter tentado fazer de situações vividas uma obra, tão imperfeita seja ela. Não ter nunca renunciado a viver usando a fotografia como desculpa. Ter tentado abolir toda distância de meu assunto. Ter querido por em prática, a meus riscos e perigos, uma verdade antiga: o mundo não é feito do que vemos, mas do que somos". Não é à toa que levou um tiro no olho, uma facada no abdômen e tomou várias surras ao longo de sua carreira, inclusive uma em São Paulo, perto da Estação da Luz.
Para d'Agata, seu tema é a violência do mundo, suas guerras, sexo, álcool, drogas: "Na fatalidade da miséria, quando não se tem nada, não há outra escolha a não ser a sensação. É o instrumento menos caro que faz você sentir, existir". A partir de 2011, acompanhou também os migrantes que tentam entrar na Europa, num projeto que procura desenhar o destino injusto, verdadeiro massacre, desses viajantes, tentando dar a cada um deles a dimensão de sua odisseia pessoal.
Antoine d'Agata na fotografia, como Francis Bacon na pintura, levaram muito longe esse mergulho nos labirintos mais profundos do ser humano e na experiência existencial de viver a dor, o sexo e a violência junto àqueles que representaram. Essa arte radical muitas vezes causa escândalo, mas revela muito do mundo em que vivemos e que nem sempre queremos encarar.

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