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O NU E A ARTE




Por EDUARDO MUYLAERT
  
Corpos, esses objetos primeiros de todo conhecimento e de toda visibilidade, na bela frase de Georges Didi Huberman, continuam a espicaçar nossa curiosidade, a nos provocar e a nos intrigar, apesar de sua permanente exibição e mesmo exploração.

Sem a presença do nu e, portanto, do modelo-vivo, na maioria das vezes uma mulher, seria impossível esboçar uma história da arte. A representação da figura humana na presença de um modelo despido vem desde a antiguidade e só foi interrompida, por influência do cristianismo, na época medieval, para ser retomada no Renascimento.

Giorgio Vasari, que fundou, em 1562, em Florença, a primeira academia de arte, presidida por Michelangelo, compreendia que os estudantes tinham muito a aprender com a prática do modelo nu.

O historiador de arte Kenneth Clark iniciou seu livro The Nude, de 1956, com uma distinção entre estar nu e estar despido. Estarmos despidos é estarmos privados de nossas roupas e a palavra deixa implícito um pouco do constrangimento que a maioria de nós sente nessa condição, afirma. Contrastando com isso, a imagem da nudez não é a de um corpo encolhido e indefeso, mas de um corpo equilibrado, próspero e confiante: o corpo re-formado.

O premiado filme de Jacques Rivette, A Bela Intrigante (La belle noiseuse), de 1991, inspirado num conto de Balzac, é uma longa aula de desenho, em que aparecem tanto a busca desesperada do artista pela perfeição do traço, como o incômodo físico da mulher que tem de sustentar longas e complicadas poses. Para entendê-lo melhor, vale a pena ler A Pintura Encarnada, de Georges Didi-Huberman, seguido de A Obra-prima Desconhecida, de Honoré de Balzac, em si um conto delicioso.
O trabalho de modelo exige preparo físico, além de ambiente adequado, conhecimento das posturas de base, e ainda da ética, que preside o contrato e a relação com os artistas. Uma sessão é um ritual, uma cerimônia, que essencialmente não difere do que acontecia na Grécia antiga ou no Renascimento.
Enquanto ocorrem poses de alguns minutos, em volta, numa atmosfera quase de culto, os artistas, consagrados ou principiantes, desenham ou pintam, com lápis, pastel, carvão, giz de cera, nanquim, aquarela, enfim, cada um com o material que preferir.
O livro Desenha-me, Manual da modelo-vivo, de Mariana Pinto, ela mesmo modelo consagrada, é uma excelente introdução ao tema, ótima leitura para quem quer posar e também para qualquer artista que queira trabalhar a partir do nu.
A grande novidade, nestes tempos de pandemia, é que a modelo vivo agora pode ser observada e representada com respeito ao distanciamento social. A Academia Charpentier de Paris, por exemplo, está fazendo sessões online algumas vezes por semana. Com o fuso horário, só nos servem as noturnas, pois as matinais chegariam aqui antes do raiar do sol.
Por outro lado, quem gosta de pintar e desenhar, e tem companhia para a quarentena, também tem acesso ao modelo vivo. Basta olhar para o lado.



















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