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A VIRALIZAÇÃO DO PRECONCEITO

Foto: Arteide

-Por SOLANGE REIS

Nesses tempos de incerteza e medo, quem não ouviu que a culpa é dos chineses?

Começa com gente graúda na maior democracia do mundo dizendo que o vírus é chinês. Depois vêm os imitadores nas republiquetas das bananinhas para reforçar a malhação.

O vírus do preconceito se espalha assim, de cima para baixo. Busca os espaços ocos do conhecimento, como água infiltrada na parede.

Noutro dia, soube que os chineses são acusados de destruir comunidades indígenas na Amazônia. Vão lá para roubar criancinhas e madeira.

Quem me contou isso, indignada, foi uma prima. Ela, evangélica, eu, ateísta. Mas nossa visão de mundo coincide na mesma medida em que a crença diverge.

Progressista e humanista, minha prima tentou contra-argumentar com a moça sinofóbica que conhecia dos cultos. Foi logo expulsa do lugar da fala. “Meu pai é chinês; conheço a cultura deles”, pontuou a fiel sem alma.

Algumas igrejas não são os únicos antros de xenofobia. Redes sociais são outro nascedouro de malquerença generalizada.

A China tem uma história grandiosa e trágica. Foi civilização e barbárie como boa parte das nações.

Quando visitei o país, estranhei tudo. Do cheiro da comida ao padrão de higiene, passando pelo conceito de atendimento. Ver trabalhadores agachados na calçada comendo o arroz da manhã era mais desconfortável para mim do que para eles.

Por outro lado, como esquecer a gentileza do povo de Luoyang? Olhando para trás, percebo o quanto não agradeci àquela gente como devia. Isso aconteceu em 2007. Éramos outras, tanto eu quanto a China.

De lá para cá, nos aproximamos física e mentalmente. Tive a chance da redenção quando me mudei para a Austrália. A presença chinesa aqui é tão grande que os políticos locais fazem campanha pelo WeChat, o equivalente chinês do Whatsapp.

Assim como minha prima, não tenho o lugar da fala sobre os chineses, mas fiz um par de amigos entre eles.

Joyce era jornalista de moda na China. Emigrou, casou, pariu, deu adeus ao jornalismo. O pão australiano de cada dia é caro, mas ela não perde uma piada. Espirituosa, tapa a boca com a mão ao rir.

Ela me chama de Sol, gosta das minhas faixas de cabeça e saias estampadas. Essa chinesa me diverte.
Mais especial do que Joyce é a taiwanesa Junie, outra ex-jornalista. Em nosso café da manhã diário, conversamos muito. Filosofia, política, literatura, filmes, viagens, casamento, culinária.

Ela gosta de ler o japonês Murakami e, por minha causa, comprou um García Márquez. Do Saramago, nunca tinha ouvido falar. Do Mo Yan, eu não fazia a mínima ideia.

Inteligente, irônica e engraçada, Junie ri às gargalhadas. Essa chinesa me enriquece.

Elas usam saia balonete de filó, amam bolsa de marca e tiram sarro das comidas calóricas do Ocidente.

Alguém mais atento há de perguntar por que Joyce e Junie não se chamam Li ou Jiao. É que geralmente adotam nomes ocidentais. São muitas Tiffanys, Christines e algumas Cecílias, assim, latinizado mesmo.

O meu terceiro chinês favorito é Linsong, um desenvolvedor de sistemas que sabe um pouco de tudo. Fotografia semiprofissional, mundo digital, formações geológicas, economia alemã, dinastias asiáticas e umas histórias sobre carnaval carioca.

Amável e culto, seus olhos desaparecem sempre que sorri. E Linsong sorri o tempo todo. Esse chinês me alegra.

Chineses não são xinguilingui. Brasileiros não são ralé. Pobre é o preconceito que nos habita. Obrigada, Austrália, por esses chineses, indianos, srilankeses que meu mundo limitado escondia.

Cada um de nós é, à sua maneira, o vazio por onde a água escorre. Quando o vírus passar e mostrar que estamos no mesmo barco, que leve embora o tanto de preconceito e xenofobia que ainda nos separa.

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