Por EDUARDO MUYLAERT 1
A sucuri viveu feliz por muitos milhões de anos, apenas sendo o que era. Sua agonia começou quando, assustada com o aquecimento das águas das lagoas e as mudanças nas matas ao redor, resolveu buscar a própria essência e descobrir seu papel na criação. Sem ter muito com quem conversar, começou pelos dicionários. Achou bonito o verbete de um alfarrábio lusitano que a definiu com três atributos: cobra – do Brasil – que atinge dez metros de comprimento. Um sentimento de brasilidade a invadiu, espalhando-se do dorso verde ao ventre amarelado. Embora haja sucuris na Colômbia, Venezuela, Peru, Bolívia, e até no Norte do Paraguai, a vocação bolivariana nunca a seduziu; a sucuri se envaidece quando reconhecem sua nacionalidade e seu tamanho (os pequenos, além de vulneráveis, lutam muito para conquistar respeito e, com frequência, se tornam irritantes). Adorou a classificação gramatical: substantivo e feminino. Os adjetivos e advérbios estão cada vez mais desvalorizados; o substantivo é um patrimônio, uma prova material de existência: sou substantivo, logo existo. Feminino é outro atributo de grande valia; os homens governaram por muito tempo, e são incontáveis os estragos que produziram. Entre as sucuris, isso não acontece: o papel do macho é bem diferente, como se verá no momento adequado. Devia ter parado por aí, já que a pobreza da definição acabou se traduzindo em poesia para seus ouvidos; mas não, a curiosidade a levou a outro léxico, mais preciso, que acrescenta duas características que a agradaram menos: cabeça com escamas, e cobra desprovida de peçonha. Não é justo definir os seres vivos pelo que lhes falta; embora cada um de nós tenha suas carências, e todos as temos, deve-se procurar sempre os pontos positivos. As antigas enciclopédias chamavam as serpentes de répteis sem patas, também não é uma boa apresentação. Mas o que irritou ainda mais a sucuri foi ver-se tabelada numa suposta classificação científica, reino, classe, ordem, subordem, família, gênero: sentiu-se como um carretel de linha em prateleira de armarinho. Segunda causa de irritação: entre os boídeos (palavra que não vem de boi, vem de boa, grande serpente, em latim) incluem-se não só as anacondas – a sucuri é uma anaconda – mas também a jiboia. Se há uma coisa que ofende a sucuri é ser confundida com a jiboia; a simples menção a esse nome a tira do sério. Tanto uma como a outra, não tendo veneno, apertam suas presas até a morte, para devorá-las; não o fazem por mal, é sua arma de sobrevivência. A sucuri pode matar um bezerro, uma anta, um pequeno mamífero, mas a jiboia não, ela se alimenta só de roedores e aves. Ora, por que, então, o senhor Saint-Exupéry, no seu Pequeno Príncipe, traz desenhos de uma jiboia que teria engolido um elefante? Uma imagem como essa pode levar a erro muitos leitores, especialmente crianças. Uma sucuri ancestral tentou convencê-la de que a leitura produz fadiga, miopia e ideias perniciosas: nada mais aborrecido do que uma sucuri sucuriosa. A velha devia ter razão, pois foi pela leitura que a sucuri desenvolveu seu primeiro trauma. Sofreu muito, na primeira sessão de terapia, ao confessar que precisava de ajuda e, principalmente, que ia ser necessário citar Guimarães Rosa (essa foi talvez a parte mais difícil). Sentiu uma ponta de ironia no olhar compassivo do analista, mas era tarde para recuar: chegara a hora de enfrentar o clássico dilema natureza versus civilização. A sucuri aparece sob seu melhor ângulo nas Noites do sertão, morando nesses brejos maiores de vereda, e nos corguinhos e lagoas muito limpas, então comuns entre nós. Ocorre que, no tão festejado Grande sertão: veredas, Rosa introduz sem cerimônia um personagem em botas de montar muito boas, dessas de couro de sucuri. Depois, indagando, a sucuri soube da fama de sua pele, valorizada por ser impenetrável à umidade. Distraída de sua ignorância original, a cobra passou a ter horríveis pesadelos: definitivamente, não queria virar calçado. Interessou-se então pela história da Terra, desde tempos imemoriais, antes que o homem aparecesse, e passasse a usar botas, e a tudo tentar dominar. O naturalista Buffon, no século XVIII, defendia que o homem poderia escapar das mutações sofridas pelos animais: “o único dos seres vivos cuja natureza seja suficientemente forte, estendida e flexível para poder subsistir, se multiplicar em todos os lugares e se adaptar às influências de todos os climas da terra”. A sucuri duvidou, e o expôs já nessa primeira parte do processo terapêutico, onde era tratada sua combalida autoestima. A serpente até desconfiou que o clínico, embora bem recomendado, fosse adepto da neurociência, ou da corrente comportamental, quando, em dado momento, ele invocou a teoria da evolução e sugeriu que talvez as sucuris pudessem um dia chegar a se transformar em seres humanos. O choque foi imediato, o trauma de virar bota desapareceu como por encanto, e foi logo substituído pelo pânico, ainda maior, da conversão de serpente em gente. Para enfrentar o novo transtorno, a cobra procurou uma terapia de vidas passadas, e foi buscar informações nos bestiários, esses poemas didáticos muito em voga na Idade Média. Constatou que as alegorias normalmente começam pelo valoroso leão e, invariavelmente, reservam o pior papel para as serpentes e os dragões. O bestiário do Irmão Daimhlaic define o dragão como a maior das serpentes, com o corpo coberto de escamas, também verdes ou amarelas, e que não necessita de veneno para matar a presa, pois a estrangula com sua cauda. A sucuri imediatamente se identificou, mas queria saber por que tinham tão má reputação. Quando o Phisyologus do século II, todo escrito em alexandrinos, foi sendo adaptado, as fantasias, exageros e preconceitos vieram junto, apesar das advertências de Aristóteles; assim, os répteis, os dragões, os crocodilos, os lagartos e as serpentes aparecem sempre como encarnação do mal. O mais injustiçado é o dragão, pois embora os dinossauros tenham desaparecido milhões de anos antes da chegado do homem, ninguém duvida de sua existência. A serpente se convenceu de que o dragão era um tipo privilegiado de dinossauro, em tudo semelhante às sucuris. Estas, aliás, só sobrevivem por conhecerem o instinto inato do homem de matar todo animal que o amedronte, e por saberem se ocultar e se defender, vivendo em águas afastadas. A serpente descartou, por completo, a absurda hipótese de ascender ao gênero humano, com o que se livrou também de mais esse terrível pesadelo; ao contrário, como sobrevivente do reinado dos répteis, precisava lutar pela sobrevida da sua espécie. O terapeuta tinha estudado Freud, Jung, Reich, e chegou a hora de tratarem da libido; a serpente não fora habituada a falar dessas coisas, rodeou, tentou fugir do assunto, veio com a história do dia em que achou que tinha visto um dragão: o animal era verde, roncava e soltava fumaça; tinha a cauda amarrada num tronco e patas pretas e redondas; só depois veio a saber que se tratava de um jipe que tinha atolado na beira da água, e que usava um motor elétrico para se soltar; foi quando percebeu que os humanos estavam chegando perto demais e mudou para uma lagoa bem mais distante; aí lhe ocorreu que sempre dizem que os dragões são mitos porque soltam fogo, mas até hoje se fala que o bafo da jiboia provoca queimaduras, e o seu próprio, depois de dias digerindo uma paca, é assustador. O analista procurou um atalho e direcionou esse súbito fluxo de consciência: onde há fogo, há desejo; como funciona a procriação na lagoa? A sucuri ficou embaraçada, pois achava estranha essa conversa. O compreensivo doutor começou por explicar que, às vezes, os nomes acabam causando incômodo; em vez de classificar tudo como se fosse doença, vamos ver do que se trata. Um pouco menos ansiosa, a sucuri explicou que a espécie é solitária até à época das chuvas, quando os machos a procuram e ela escolhe. A grande diversão é o baile do acasalamento, com seu ruído característico; até uma dúzia de machos se acercam e tentam possuí-la, mas as fêmeas são mais fortes e podem escolher quantos quiserem; às vezes, depois, até devoram um macho menor. O psiquiatra perguntou se ela se sentia mal com a prática e ela disse que não, gostava muito, aliás. Então, ele começou uma longa digressão sobre machismo, tabu, poligamia e poliandria, mas a sucuri já estava pensando em outra coisa. Com o ego restaurado, achou que podia valorizar o lado bom das coisas: lembrou que o próprio padre Anchieta, agora santificado, tinha se curvado à sua admirável magnitude, e que Fernão Cardim a situava entre as maiores serpentes do Brasil, assim na grandeza como na formosura. Mais, sente-se quase um dragão, pois o mal que fazem, como relata um cronista, é “tendo onde segurar o rabo, aquillo em que se enroscam infallivelmente o puxam para a água”. Percebendo-se reconhecida, e restaurado seu orgulho, a sucuri se deu alta da terapia, pensando em como contribuir para o bem-estar de sua espécie. Sentindo-se impotente para mudar as coisas nesses tempos difíceis, lembrou-se do sucesso de La Fontaine e pôs-se a escrever fábulas, que alcançaram grande êxito, primeiro na lagoa, com os filhos, depois entre os répteis e, finalmente, em todo o reino animal. Primeiro havia o mundo, e os dinossauros, e os dragões, e os crocodilos, e as lagartas, e as serpentes, e nenhum era o mal, e todos obedeciam à natureza; aí veio o homem, e vocês sabem o desastre que aconteceu, mas essa espécie já está se extinguindo, e então os répteis de todas as famílias vão voltar a ser o que sempre foram, crescendo e se multiplicando em águas claras e matas frondosas.
1. Publicado anteriormente em Ninguém Humano – Bestiário do Coletivo Literário, Editora Terceiro Nome, 2014.
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