Pular para o conteúdo principal

PREFIRO DORMIR NA PRAIA




Por - EDUARDO MUYLAERT


Juro que não foi minha culpa. Eram dois, com um jeito esquisito. Não tive tempo de mudar de calçada. Segurei a carteira com força. O grandão apontou para mim, mas tropeçou. O magricelo correu. Peguei o 38 no chão. Pensei em devolver, achei que a hora não era de gentilezas. Disparei sem pensar.

Não deve ter doído muito. Ar de espanto. Não deu um pio. Queda rápida, o cara era pesado. Nem um barulhinho. Nada a ver com os filmes de caubói ou de mistério. Acho que não sofreu. Não muito. Foi mais o susto. E uma mancha vermelha na camisa.

Quando percebi que ninguém tinha visto, veio uma calma perfeita. Quis me esconder em algum lugar. Nunca tinha dormido em um automóvel. Bati forte no vidro, abri a porta. O banco de trás é mais confortável. Prefiro dormir na praia, com o barulho das ondas, me acalma, essa é minha melhor lembrança. Mas o Fiesta meio sujo foi um abrigo salvador.

Não é minha, seu guarda, juro que não é minha. Ela caiu no chão e peguei, só para me defender. Não tenho culpa se o infeliz tropicou. Achei que ele ia me matar. Nunca tive arma, não quero mesmo ficar com essa. Pode levar, é sua.

Não, nunca matei ninguém antes. Já ouviu falar em legítima defesa? Não sou bandido, sou vítima. E a tal da presunção de inocência? Será que não entende? Era ele ou eu. Não tive escolha, mas se fosse escolher um método, seria tiro mesmo. Sempre tive pavor de lâminas e facas. E de polícia.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Posse da Vida

                      No banco do meio na fileira à minha frente, um moço lê um livro. Do outro lado do corredor, outro moço e outro livro. Não estou no metrô de Londres. No universo de um voo doméstico brasileiro, em uma manhã de quinta-feira, essa incidência de leitores me chama a atenção. Eu mesma leio, com o laptop aberto. Talvez eu esteja simplesmente procurando significados e comparsas para a sensação de bem-estar deste momento.               Apuro a visão para tentar enxergar algo do livro do moço da frente. Do outro lado do corredor, o outro moço apoiou o dele na mesinha, sublinha trechos com um lápis e de vez em quando para de ler e parece refletir.               Daqui a 72 horas, Lula estará subindo a rampa do Planalto. Voamos rumo a Brasília. Da minha parte, sem medo de ser feli...

UM DIA DE CADA VEZ, o caruncho

Desde há muito tempo aderi aos orgânicos, mas na era pré pandêmica me atinha principalmente às frutas, verduras e legumes. Além disto, desde que meu ninho esvaziou deixei de estocar o que quer que fosse. A pandemia mudou tudo. Descobri um hortifruti sensacional, compra online, entrega em domicílio. E que, além dos vegetais frescos, tem grãos -o melhor milho de pipoca de todos os tempos- açúcar demerara, mel, molho de tomate pronto, farinhas. Aderi entusiasticamente. E cometi a bobagem de comprar mais feijão do que sou capaz de comer. Hoje fui buscar o último pacote para cozinhar. No fundo de uma das caixas de plástico, brancas, em que guardo meus mantimentos, percebi pontinhos pretos. Imaginei que fosse um saquinho de linhaça que tivesse furado. Só que a linhaça se movia, reparando bem. Tirei a caixa de dentro do armário para ver melhor. Minhas amigas, meus amigos, faltam-me recursos narrativos... Conheci caruncho muito bem. Criança bem novinha, morei certa vez em uma casa que tinha mi...

DE PERNAS PARA O AR (Edu)

Por EDUARDO MUYLAERT Joaquim Fernandes era um rapaz tímido, não fazia sucesso com as mulheres, também não era bonito nem feio, talvez um pouco sem graça. Não combinava com carnaval. Nos bailes se tornava um chato, enchia a lata e desandava a falar besteiras, ninguém aguentava. Joaquim não se via enturmado na folia, queria mesmo era ter uma namorada, nem precisava ter beleza ou outras qualidades, só tinha que ter pernas bonitas. Sim, acreditem, essa era a única exigência de Joaquim Fernandes, uma espécie de fetichismo que nunca escondeu. Todos os anos se renovavam as esperanças de Joaquim no caminho do clube Caiçara, o melhor da cidade. Quem sabe dessa vez vai; tinha apostado aos 14, 15, 16 e 17. Agora já era maior de idade, ia jogar todas as fichas. De fato, logo ficou vidrado numa morena não muito grande, nem chegou a reparar no rosto, tão distraído estava com as pernas sinuosas, em tons que tentou definir como uma mistura delicada de sépia, rosa, e um pouco de our...