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UM DIA DE CADA VEZ: Boris, Donald, Jair. E Jacinda.


  
ETEL FROTA

   Abigail, Lauren e Clara se conheceram em meados de fevereiro. Foram reunidas, pelo acaso, no Stafford Hall da Victoria University, em Wellington, Nova Zelândia.
Elas têm, as três, 20 e poucos anos e estão vivendo a terceira semana de um ferrenho lockdown.
   Abigail, a Abbie Jane, é britânica de Cambridge e nos próximos 3 anos cursará um doutorado em legislação ambiental. Lauren é norteamericana do Colorado e se preparava para a conclusão do seu mestrado em biologia marinha e a volta para casa. Clara é minha filha. Inicia seu sonhado mestrado em museologia. Enquanto esperam, se exercitam no quintalzinho dos fundos do Hall -1 hora por dia, o permitido no atual nível do lockdown- e assistem aulas online, adiantam leituras, escrevem trabalhos. Preparam suas refeições na cozinha que compartilham, dentro de uma escala rigorosa que adotaram, já que Abbie e Lauren andaram gripadas. 
   A Clara, que vive na Nova Zelândia há 2 anos,  estava no Brasil quando se começou a falar dos primeiros casos do Covid-19, que naquela época nem nome ainda tinha. Sua passagem de volta estava marcada para o dia 7 de fevereiro, e cogitamos que ela não fosse. Parecia pouco sensato sair do Brasil, que naquela época ainda ficava a tantos milhares de quilômetros da Ásia. Sabíamos de nada, as inocentes.
   Passaram-se 2 meses, desde então. Parece que foram 2 anos.
  Boris, que governa o país de Abbie, depois de fazer graça com a pandemia, saiu ontem da UTI a tempo de colher os frutos do seu humorismo, com a Inglaterra contabilizando sua décima milésima morte. Boris elegeu, para heróis da sua recuperação, dois profissionais de enfermagem, Luís e Jenny. Ambos imigrantes, como imigrantes foram os primeiros médicos mortos pela Covid-19 no país. Como de imigrantes é composta uma terça parte dos profissionais de saúde do NHS, o sistema nacional de saúde britânico que vem sofrendo asfixia crescente desde que governos conservadores vêm reduzindo os aportes. Luís, português e Jenny, neozelandesa, talvez não estivessem à cabeceira de Boris, se tivessem pretendido imigrar sob as leis do Brexit.
   Lauren mora no país governado por Donald, outro piadista empenhado no cultivo à xenofobia e na contramão da saúde para quem precisa de saúde. Depois de ter jogado seu país na vala comum da calamidade pública, com o maior número de casos do planeta concentrados em um só estado, cercou-se, tarde demais, de especialistas e adotou um farsesco tom compungido, que em sua boca soa indecente.
   Jair, o presidente do país onde a Clara nasceu, é devoto de Donald, mas não aprendeu nada a partir da página 2 e parece estar perdido na tradução. Continua rodeado de terraplanistas e a cada dia que passa menos consegue achar os motes toscos para suas tentativas de piadas abomináveis. Ontem, entre um e outro dos seus rolezinhos -que puxam para baixo o número das pessoas que ficam em casa por compreenderem que o nosso filme de terror está apenas começando- declarou que ‘está começando a ir embora a questão do vírus’.      
   A Nova Zelândia registrou seu primeiro caso de Covid-19 no dia 28 de fevereiro. Em 14 de março o país tinha 6 casos confirmados e os estrangeiros que chegavam ao país eram obrigados a se manter em quarentena por 14 dias, supervisionados pelas autoridades sanitárias. As fronteiras aéreas foram fechadas em 20 de março. Dia 23, 102 casos, nenhuma morte, a primeira ministra Jacinda Ardern anunciava ao país o início do lockdown. 
   Colhendo uma diminuição consistente de novas ocorrências há vários dias, com 5 mortes e 1349 casos, a NZ começa agora a discutir o rebaixamento do lockdown de grau 4 para 3.  
   Sim, são incomparáveis os países. A Nova Zelândia é uma ‘ilha distante’, a verdadeira Ilha da Fantasia, e tem uma baixíssima densidade populacional. Jacinda, em seus pronunciamentos, menciona esses fatores de ‘sorte’. Seu ministro da saúde reforça, no entanto, o que considera ter sido tão essencial quanto as variáveis geográficas e populacionais na escrita dessa história de sucesso, única no planeta: liderança, respaldada na ‘boa ciência’.
   Abbie, Lauren e Clara estão protegidas das decisões do trio de ouro do negacionismo viral. A salvo da santíssima trindade da boçalidade. Os países das gringas estão mergulhados no caos. O da brasileira vai chegar lá; quem viver, verá.
   Daqui a pouco a vida das meninas volta aos trilhos. A nós, suas famílias, o futuro próximo ainda reserva descarrilhamentos, mas estaremos amparadas pelo alívio de sabê-las protegidas. 
   Ninguém expressou esse sentimento de forma mais eloquente do que Lauren. "Jacinda, você é deusa e ícone; não tenho como lhe agradecer o suficiente por você ter mantido os cidadãos e os residentes temporários do seu país (como eu) seguros, saudáveis e apoiados, emocional e materialmente." 
    Sob a sombra funesta de Boris, Donald e Jair, nós, as mães, assinamos embaixo. 
  



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