-Por EDUARDO MUYLAERT
Prezada Doutora Suzana,
Desculpe invadir o seu WhatsApp, sei que me deu só para emergências, mas trata-se de uma espécie de emergência. Sempre achei que meus dias estavam contados, mas agora desconfio que são as horas, ou melhor minutos, talvez segundos, que estão contados.
Agradeço por toda sua paciência e atenção, porque não dizer pelo carinho que teve para comigo, embora eu não fizesse por merecer. Ir ao seu consultório sempre foi uma faxina na minha insípida existência, dando esperança de que um dia pudesse voltar a brilhar o assoalho enterrado sob grossa crosta de decepções.
O calor que ameaça me invadir agora é outro, não tão eficiente quanto o que emana da sua pessoa, mas mais rápido na solução dos problemas.
Por volta de 21h45, com certeza, pois eu acabara de assistir ao Jornal Nacional, que sempre me dá sono, apesar do drama em torno do surto de corona vírus, fui à cozinha para fazer um chá de erva cidreira, que sempre tomo antes de me deitar.
Fico apavorado com o número de mortes causadas pelo surto. Tremi quando ouvi que a cidade de Nova Iorque está construindo, não hospitais de emergência, como em muitos outros lugares, mas um necrotério de emergência, a que ponto chegaram as coisas e a que ponto ainda podemos chegar.
Bom, desculpe a digressão, voltando à vaca fria (nem tão fria assim), o que se passou foi que, tão logo eu tinha desligado a televisão, comecei a ouvir uma barulheira aqui na minha rua. A senhora sabe que moro na Avenida Angélica, perto da rua Sergipe, onde construí toda uma vida. Adoro as padarias e, nas noites de festa, chego a ir a pé até à Praça Vilaboim, folhear uma revista na banca ou comer um sanduíche na Barcelona. Cheguei até, por uma única vez, a comer o croissant com ovo e flor de sal da Fabrique, na rua Itacolomy, lugar chique, cheio de gente moça e bonita, alguns com seus bebês, lá só usam farinha francesa.
Deixei de ir à Fabrique, fiz um trato comigo mesmo. Só volto lá quando tiver conquistado o amor dos meus sonhos, o que até agora não tinha acontecido.
Voltemos ao episódio da avenida Angélica, por volta de dez da noite. No começo, pessoas se aglomeravam na calçada em frente ao meu prédio. Imaginei que algum maluco, ou deprimido, estivesse querendo pular da janela. Se atirar daqui seria morte certa, ainda mais eu que moro no décimo-terceiro andar. Então comecei a ouvir sirenes, e fui olhar, pois sempre me interesso quando algo de anormal está acontecendo. Sigo com a vista as ambulâncias e também os carros de polícia. Desta vez eram os bombeiros, dois caminhões-pipa, uma escada Magirus e dois resgates, escrito bem grande na carroceria 192. Ah, sim, havia também uma viatura da Polícia Militar. A coisa devia ser grave.
Você sabe que sou um pouco lento, quando dei por mim havia labaredas subindo, adivinha aonde? Na fachada do meu prédio. Coloquei uma toalha molhada, bem enrolada, na fresta da porta, para segurar a fumaça que começava a entrar. Já vinha algum calor pela porta, e nem dava mais para encostar no vidro da janela. Não havia mais como chegar às escadas, elevadores não são recomendáveis nessa hora.
Estou aqui torcendo para que os bombeiros dêem conta da situação. Se eu sair dessa, meu amor, a primeira coisa que vou fazer é ir te ver no consultório, ou na sua casa, se você me permitir.
Sempre fingi que não te amava, que era apenas um paciente carente. Muitas vezes, sozinho à noite, conversava com o retrato que tirei sem que você percebesse, durante uma das consultas.
Saiba afinal, Suzana, que você foi, ou é, não sei ainda, o grande amor da minha vida, a única mulher que preencheu todos os meus sonhos e me acompanhou nas horas de tristeza. Sou um covarde, eu sei, deveria ter me revelado antes, mas tive medo de uma grande decepção. Se você pedisse para eu não confundir os papéis, ou começasse a me explicar o que é transferência, aí sim eu pulava da janela.
Agora você já sabe, vou apertar o enter (ou return) antes que cortem a luz e a internet.
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