- Por EDUARDO MUYLAERT
Não temos tempo de chorar a morte
Está na hora de lavar os pratos
Deixa o coveiro carregar os corpos
Vá lamentar a sua própria sorte
Fui buscar na estante meu volume de L’Oeuvre au Noir, de Marguerite Yourcenar. Lembrava que tinha algo a ver com a Peste Negra. A Idade Média talvez pudesse ajudar a entender o que acontece conosco no ano da graça de 2020. Achei também a tradução do poeta Ivan Junqueira, sexta edição, Nova Fronteira, 2018. Sorte a nossa, pois na França a obra está esgotada, e nos Estados Unidos um exemplar pode custar quase mil dólares. Aprende-se muito com ele.
“Martinho fez distribuir a sopa aos pobres sob o pórtico da lgreja de São Gedeão; a caridade cristã e o medo de que eclodisse alguma arruaça inspiravam ao burguês essas espécies de esmolas. Tais males, no entanto, nada mais eram do que a antecipação de uma calamidade infinitamente mais terrível. Vinda do Oriente, a peste entrara na Alemanha pela Boêmia. Viajava sem pressa, ao som dos sinos, como uma imperatriz. Debruçada sobre o copo do beberrão, soprando a vela do sábio recolhido entre seus livros, ajudando o sacerdote na missa, escondida como uma pulga sob a blusa das prostitutas, a peste trazia à vida de todos um fator de insolente igualdade, um acre e perigoso fermento de aventura.”
As catástrofes fazem parte da memória coletiva da humanidade, mas a Peste era de todas a última que se poderia esperar em pleno século XXI. Uma guerra cibernética, um acidente nuclear, a terceira conflagração mundial, a devastação climática, escassez de água e alimentos, um ataque de extraterrestres, nada disso espantaria. Mas veio a pandemia, e os relatos da Idade Média penetram nossas vidas como se fossem notícias de hoje.
“A epidemia, doença social de efeitos bruscos e amplos, é uma grande realidade histórica, por muito tempo tão desconhecida pelos historiadores como temida pelos contemporâneos”, registra a cientista Jacqueline Brossollet. Esta, e em especial as pandemias, provocam um abalo das estruturas morais e materiais dos grupos humanos, com desastres que se inscrevem por muito tempo na paisagem.
Antes que começasse meu curso de Direito na Panthéon-Sorbonne, em meados de outubro de 1969 peguei um trem para ir de Paris a Bruxelas e Amsterdam. Coloquei minha mala no bagageiro e sentei-me. Eis que entra uma senhora francesa de baixa estatura, tira os sapatos, põe pantufas, e começa a resmungar que minha mala ia cair na sua cabeça. Essa viagem promete, pensei.
Confinamento, isolamento social como prevenção:
”Martinho entrincheirou-se em seu gabinete como se o fizesse contra um ladrão. A dar-se-lhe ouvidos, a melhor profilaxia consistia em beber moderadamente o Johannisberg (vinho branco) de boa data, em evitar as raparigas e os companheiros da roda de cerveja, em não aspirar o odor das ruas e, sobretudo, em não se informar quanto ao número de mortos”.
A senhora do trem chamava-se Claude Mélendès, no fundo só queria puxar conversa. Acabamos nos tornando bons amigos, embora ela se ofendesse com facilidade. Foi Claude quem me deu a primeira edição de L’Oeuvre au Noir, de 1968, da Gallimard, hoje um pouco amarelecida. Ficou horrorizada quando achei Port Royal, o clássico de Henry de Montherland, uma peça comprida demais. Minhas principais leituras então eram Simenon (o comissário Maigret, claro), o Le Monde, e os livros jurídicos. O teatro clássico e Yourcenar me pareciam um pouco puxados. Depois entendi a profundidade de Marguerite, que agora compartilho nesse momento de angústia coletiva.
Por volta de 542, descreve Procópio, eclodiu uma epidemia que consumiu quase todo o gênero humano. Foi a chamada peste de Justiniano, que se abateu sobre o Ocidente e o Oriente Médio e se estendeu até o século seguinte. Além da forma bubônica clássica, apareceu a pulmonar, que matava em poucas horas e contaminava os próximos pela tosse ou pelos espirros.
“Marta trazia as bandejas e as mudas de roupa de cama, mas cuidava de nunca entrar no quarto. Não se obtivera êxito em procurar os serviços de um médico. Na noite seguinte à morte de Salomé, Benedita, deitada ao lado da prima, começou por sua vez a sentir os primeiros sintomas do mal. Uma sede insuportável a queimava; (...) Uma pequena tosse convulsa lhe arranhava a garganta; ela a retinha o máximo de que era capaz para não perturbar o sono de Marta”.
Claude era solteirona e trabalhava nos perfumes Caron, de foulard e salto alto. Antes de se aposentar, casou-se com Sidney Lall, um indiano elegante que falava um inglês britânico e não gostava de aprender francês. Claude ficava furiosa quando voltava do trabalho e encontrava o rádio sintonizado na BBC de Londres.
Marguerite Yourcenar nasceu em Bruxelas e foi a primeira mulher a chegar à Academia Francesa, em 1980. Apesar disso, viveu nos Estados Unidos de 1947 até sua morte, em 1987. Sua notoriedade se deve principalmente às Memórias de Adriano, de 1951. Ela pratica o romance histórico construindo ficção. Zenon, o personagem principal da Obra em Negro, prêmio Femina de 1968, é uma criação inspirada em Giordano Bruno, Leonardo, Copérnico e outros sábios que desafiavam as verdades da época em busca de conhecimento. Ele vive abafado numa Flandres em que reinam “a ignorância, o medo, a inépcia e a superstição verbal”.
“Marta a atendia, com um lenço sobre o nariz, consternada pelo horror que sentia pelo corpo infectado. (…) “Os médicos do lugar estavam ou exaustos, ou apavorados com a epidemia, ou, ainda, firmemente decididos a não contaminar seus doentes habituais, aproximando-se do leito dos pestosos; corriam porém, notícias de que acabara de chegar a Colônia um homem de grande conhecimento e perícia (Zenon), disposto a estudar os efeitos do mal no próprio sítio onde este ocorrera”.
Guy de Chauliac (1300-1368) praticava a cirurgia e escreveu Grande Chirurgie, primeiro tratado didático sobre esta arte. Num dos capítulos, descreve com precisão o quadro da peste em Avignon, com detalhes sobre suas formas bubônica e pulmonar. À época, ele chegou a atender vários papas. Até à Revolução Francesa (1789) os cirurgiões pertenciam à ordem dos barbeiros. Foi só em 1803 que eles foram reconhecidos como médicos.
“Vez por outra, ouvia-se-lhe a tosse curta e seca, semelhante ao latido de um pequeno cão, sempre que isso ocorria”(…) “Marta lutou contra o terror que lhe inspirava essa morte, cujos preparativos se faziam sob seus olhos e - o que era ainda pior - contra o pânico de ser ela própria também infectada pela peste como se o é pelo pecado”.
A influência do contágio é percebida há muito tempo. Paris proíbiu, em 1580, a venda de móveis e objetos em tempo de epidemia. Na peste de Gênova, em 1637, queimava-se a roupa de cama dos doentes. “Medidas de proteção, a mais geral é então o isolamento. Isolamento dos doentes, de sua casa, de seus próximos, das ruas e bairros afetados, ou concentração dos pestiferados em tendas fora dos muros (Paris, 1585). Isolamento também da cidade ou da província ainda livre de lares contaminados” (Jacqueline Brossolet e outros, Épidémie).
“Os vasos linfáticos estão apenas intumescidos, e ela morrerá sem dúvida antes que eles se enfartem. Non est medicamentum . ..” (Não há remédio)
A importância da higiene só foi reconhecida no século XIX; até então, as ruas eram em geral imundas, com animais vivos de todo tipo e abundantes parasitas, facilitando a propagação de doenças transmissíveis. Um avanço médico precoce com o resultado da Peste Negra foi o estabelecimento da ideia de quarentena na cidade-estado de Ragusa (moderna Dubrovnik, Croácia) em 1377, após contínuos surtos. (Sehdev, The Origin of Quarantine).
Numa ida à França, combinei um jantar com Claude. Ela escolheu um restaurante árabe que frequentava e fomos comer o cuscuz marroquino, prato que adoro. Ela chamou o proprietário e o interpelou: - Frequento esse lugar há muitos anos e da última vez houve uma desfeita. Em vez de vir o cuscuz na travessa funda, me foi servido no prato. – Desculpe, minha senhora. Foi a única vez que me ausentei do restaurante nos últimos 20 anos. Meu primeiro filho tinha nascido, e não pude vir trabalhar. Me desculpe. Ao invés de serenar, aumentou a ladainha da cliente ofendida, parecia não ter fim. O episódio estragou o jantar e depois disso nossas cartas rarearam. Sorte é que naquele mesmo vagão vinha uma jovem holandesa que também ficou amiga de Claude e nunca desistiu.
A Peste Negra começou na China e chegou à Europa depois do sítio de um entreposto genovês por tropas da Mongólia (1346). Logo atingiu Constantinopla, portos italianos e Marselha, para abranger todo o Mediterrâneo e depois a Europa inteira. As populações infectadas morreram em grande número, a peste não distinguia idade ou status social; as quedas demográficas foram brutais. A doença ficou endêmica por mais de três séculos. O Livro de Yourcenar se situa no século XVI, Zenon nasceu em 1510. Como o dinossauro, a Peste ainda estava lá.
“Já na escada, tirou a máscara de que se servira junto à cabeceira da enferma, como era de costume”. “Aconselho que proteja as narinas com um pano branco embebido em álcool (não confio muito em vinagre) e que vele até o fim a moribunda. Seus temores são naturais e razoáveis, mas a vergonha e o remorso não são males menores”. “Por precaução, obrigou-se também a mastigar um pouco de alho”.
A última vez que vi Claude foi na véspera da morte de meu pai, era um feriado, 15 de novembro de 2005. Ela passava por Guarulhos, vinda da Argentina, e eu deixei o hospital para ir encontrá-la, ainda que por breve instante. Levei alguns livros ricamente ilustrados de presente. Ela reclamou que não podia carregá-los, e que eu não a procurava mais. Meu esforço foi em vão, as queixas prevaleceram. Na volta, lembro de ter chorado, eu sentia que meu pai estava partindo também.
Consta que a Peste Negra matou mais de um terço da população da Europa. A luta entre o homem e a doença, afirma Jean-Louis Miège, não termina nunca. Nos últimos anos, o medo secular das pandemias reaparece. Ele se alimenta da mundialização e do aparecimento de novas doenças infecciosas, entre as quais as gripes aviárias. Também pelo desprezo do ser humano pela natureza e pelos cuidados com os mais fracos e desprotegidos.
As catástrofes fazem parte da história da humanidade, mas a Peste era o último cataclismo que se poderia esperar em pleno século XXI. Talvez o tenhamos provocado. Agora temos que conviver com o confinamento ou a morte. Mas ainda tem gente que não quer entender.
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