- Por J MARCELO ALVES
Na coletiva do último domingo (4), o presidente estadunidense mais uma vez promoveu o uso de um medicamento com poucos testes de qualidade e evidências controversas de sucesso contra a Covid-19. Dentre as coisas que não se espera ouvir de um chefe de estado, em especial o do país mais poderoso e influente do mundo, ele disse novamente que as pessoas deveriam usar a droga pois, afinal, "what do you have to lose?"
Trump e seus miquinhos amestrados d'álém mar querem que o tal medicamento seja usado em todos pacientes que tiverem diagnóstico positivo de infecção pelo vírus SARS-Cov-2 --e até por aqueles que nem têm diagnóstico confirmado, mas apresentam sintomas suspeitos.
Ele se referia, claro, ao uso da já notória hidroxicloroquina (HCQ), desgraçadamente politizada até o osso por alguns políticos desesperados por encontrar algo que os salve nesta pandemia. No entanto, a droga em questão não vem ao caso, necessariamente. Quero abordar a pergunta dele, e de muita gente: o que se tem a perder em tentar?
Talvez nada... ou muita coisa, incluindo a vida.
Para o leigo, pode parecer razoável que drogas bem conhecidas como a HCQ e muitas das outras atualmente em testes contra a Covid-19 possam ser utilizadas imediatamente e sem problemas contra uma nova doença. As coisas não são tão simples, no entanto. Embora ser uma droga já testada e aprovada para tratamento em humanos seja realmente uma vantagem que acelera muito o desenvolvimento de um novo protocolo de uso, não há garantia de que ela seja tão segura na nova situação quanto naquelas em que foi aprovada.
Seres vivos são complexos e o número de variáveis envolvidas é sempre gigantesco, até nos casos aparentemente mais simples. O uso de uma droga pode trazer muitas surpresas, não necessariamente agradáveis. Seguem dois exemplos de possibilidades teóricas que me ocorrem agora.
Em um caso de emergência como o da Covid-19, os médicos ministram várias drogas para os pacientes, na tentativa de minimizar o dano da moléstia --e às vezes mais de uma dessas drogas é experimental para o caso em questão. Um problema em potencial é que a interação entre drogas nunca antes usadas juntas em larga escala leve a efeitos colaterais mais perigosos do que a doença que se está combatendo. Os médicos podem fazer certas apostas bem fundamentadas no conhecimento prévio, mas nunca é possível ter certeza sem testes clínicos bem feitos.
Outro problema: cada doença é diferente no modo como afeta o organismo. Uma droga que não causa problemas sérios durante o tratamento de uma certa moléstia pode muito bem ser perigosa no contexto do organismo afetado por outra. As moléculas e tecidos afetados em cada caso podem ser muito diferentes e o que é inofensivo em um caso pode não ser em outro.
Em qualquer dos dois cenários hipotéticos acima, uma droga que apresente uma taxa de 1% de ocorrência de efeitos colaterais graves (de sequelas permanentes até morte) pode ainda parecer bastante segura. Noventa e nove porcento dos pacientes saem ilesos, afinal. Mas e se a droga for usada em 100 milhões de pessoas? Ela tem que salvar muita gente para compensar um milhão de pessoas deixadas com problemas sérios ou até mortas.
Então nunca se deve tentar? Como quase tudo na vida, a questão tem nuances. Se a nova doença for muito frequentemente mortal, sim, o nível de desespero justifica qualquer tentativa. Está no inferno, abraça o capeta. Vai morrer de qualquer jeito, então tenta-se de tudo.
No caso da Covid-19, no entanto, cerca de 85% dos pacientes se curam sem necessidade do uso de qualquer droga específica, ou seja, tomando somente remédios para amenizar os sintomas como febre e dores no corpo. Isso sem contar que muita gente nem apresenta sintomas a ponto de ser um caso suspeito. Um medicamento para tratar uma doença assim, pelo menos em sua forma branda, precisa ser muito seguro para não trazer um risco maior do que o da própria doença.
Drogas, no entanto, frequentemente apresentam riscos, mesmo que baixos. Pela ética médica, o benefício do tratamento tem de ser significativamente maior que seu risco. Sem testes rigorosos, não sabemos qual o benefício nem o risco de um tratamento. Até mesmo havendo feito tais testes com competência, abundam casos em que se descobriu, anos depois e com o medicamento já em uso comercial, que os danos causados pelo medicamento não compensavam, então imagine-se em um caso como a atual pandemia, onde se atira para todo lado... É da natureza das práticas médicas e farmacêuticas, infelizmente. Inevitável.
É por essas razões que só se recomenda oficialmente usar tratamentos experimentais em pacientes em estado grave e nos quais outros tratamentos melhor conhecidos não estejam surtindo efeito. Com o tempo, testes e melhor conhecimento, estende-se o uso para outros casos cada vez menos graves, mas sempre tendo em vista a obediência ao princípio de que o benefício tem que ser maior que os danos possíveis. Primum non nocere.
No caso particular da HCQ, muita gente ainda tem a irresponsabilidade de recomendar que seu uso seja feito de maneira ampla antes de sabermos se é seguro, mas as notícias mais recentes não são encorajadoras. Tem-se reportado problemas com muitos efeitos colaterais ou falta de efetividade limitando seu uso na França, Suécia, em Manaus ou pelo Brasil todo. Isso não descarta completamente o seu uso, claro, mas certamente vai contra qualquer recomendação de uso indiscriminado em todos pacientes.
Os protocolos de pesquisa, especialmente aqueles relacionados à medicina, são rígidos e seguem regras e procedimentos intricados por razões importantes. Não estão aí por masoquismo ou preciosismo acadêmico de cientistas.
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