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QUARENTENA, DIA 27

Por DANIELA MARTINS

11/4 - QUARENTENA, DIA 27. Hoje eu comprei cinco máscaras de tecido na banquinha do seu João. Ou melhor, no escritório desse novo empreendedor individual, como a reforma trabalhista o define.

Pois ele me disse que trabalha vendendo óculos escuros e de grau na calçada da Ataulfo de Paiva, altura do Talho Capixaba, há 25 anos. Com a chegada do coronavírus, teve que “diversificar a natureza do negócio”. Arregimentou costureiras no bairro onde mora, a Ilha do Governador, e passou a vender máscaras de tecido a 10 reais e garrafinhas de álcool em gel a 25 reais cada.

Repara na cadeira de presidente que ele ocupa, empreendedor de si mesmo. É claro que ele está à margem do sistema e que vai precisar da ajuda de 600 reais do governo.

Eu fico pensando nos que estão à margem de todas as margens, fora dos centros urbanos, vivendo numa falta de tudo que nem fazemos a real ideia. Como vão baixar o app disponível para apple e android e efetuar o cadastro de inúmeras páginas para receber o benefício? Como, se não têm celular? Como, se não sabem nem ler?

O brasileiro precisa conhecer o Brasil para ver com os próprios olhos o que não pode jamais continuar sendo aceito. Para acreditar que existem lugares no interior do Maranhão, do Piauí, de tantos outros estados, sem economia formal de nenhuma espécie, sem escolas além da quinta série, sem posto de saúde, sem transporte público. Não tem dinheiro circulando e não dá pra montar nem uma banquinha na calçada.

Nunca o mundo produziu tanto em termos de riqueza e insumos, mas ainda vivemos com a mesma preocupação de uma leoa que acorda na savana: o que eu e meus filhotes vamos comer hoje?

São muito poucos os que realmente não têm essa preocupação. E isso é triste, porque deveríamos poder ir muito além.

Na prática, já poderíamos ir além com o tanto que produzimos hoje, não fosse esse tanto tão indecentemente concentrado.

A ideia de uma renda social mínima é a única coisa que poderia limpar um pouco a barra do sistema capitalista tal como o experimentamos hoje. Não é um favor, é um imperativo moral.

Mas é incrível a resistência das pessoas a isso. Seu João mesmo, se duvidar, deve achar um absurdo essa gente que vive mamando nas tetas do governo, essas mulheres que fazem filho só pra ganhar o Bolsa Família.

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