Illustration by Miguel Porlan, The New Yorker. |
-Por SOLANGE REIS
Virginiana com ascendente em Virgem, indisciplina é meu nome do
meio.
Uma incoerência astral fácil de explicar.
Astrologia não tem muita lógica. E quando nasci, exatos cinco
meses depois do golpe militar pela "liberdade", os astros deviam
estar bem confusos.
Faço a digressão para confessar que não consigo escrever um
diário. Como o faz Daniela, focassaura incansável na quarentena cheia de
filhos, paixão, quitutes e Brasis.
Se eu tentasse, faria um devezemquandário.
Um dia, ia ter detalhes. Noutro, nada. No terceiro, linhas
preguiçosas. No quarto, o epitáfio da curta jornada.
Mesmo assim, arrisco um resumo do meu aquartelamento.
Os dias da semana têm sido de muito trabalho. Bem diferente de
dezenas de milhões de desempregados que engrossam a massa dos desesperados.
Todos os meus dias —os úteis e os ainda melhores— têm episódios de uma série de espionagem francesa ou filmes.
Alguns deles são ótimos, mas duros. Detroit em Rebelião e Capernaum, só com
antidepressivo para aguentar.
Nas horas vagas, leituras nunca antes exploradas. Samuel Beckett,
com o fascinante e amargurado Molloy, e Ruy Castro, com o seu não menos amargo
anjo pornográfico.
As noites tocam slow blues. Quem precisa de mais?
Os fins de semana têm tudo isso, só que com vinho e cerveja.
Domingos são ricos. Carol e Leo vêm almoçar e conversar.
Ela, luz e energia em forma de filha. Ele, o namorado, o que dispensa
outras credenciais. Ser especial é a condição para fazer parte do mundo dela.
A tarde é embalada por sorvete de pistache e conversas sobre
coronavírus, feminismo, distopia brasileira e famosos da história. Todos
concordam que Jesus ganha de Hitler, mas por pouco.
Bate desesperança, só que o domingo termina menos melancólico do que
no Brasil. Não tem música do Fantástico nem marcha por morte e ditadura.
Na segunda-feira, o número de mortos por Covid-19 na Austrália
ainda será de dois dígitos.
Nem assim o governo relaxa. Quer usar um aplicativo de
rastreamento individual; helicópteros vigiam e dispersam os happy hours clandestinos nos telhados.
Dizem que o mundo nunca mais será o mesmo. Entraremos no período
da hiper-história, das sociedades ultravigiadas e sem fronteira entre mentira
e verdade.
Sem dúvida!
Também falam que já estamos na Era de Aquário. O lado positivo do aquariano é não se limitar a sua casa e pessoas próximas. Gosta do coletivo.
Esse negócio de astrologia...não sei, não.
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