(This photograph from Thomas Hoepker is available at magnumphotos.com )
EDUARDO MUYLAERT
A mulher com a blusa colorida e cheia de sacolas caminhava pela beira da estrada, quebrando a expectativa da paisagem. Por que estaria fora de casa, quando quase todos estão confinados por causa da pandemia? Pode ser que tenha ido comprar mantimentos para alimentar a família, terá filhos? Parece ainda jovem, mantém a cabeça erguida e enfrenta sem temor os percalços do trajeto.
Fazia quinze dias que eu não saia de casa, entre medroso e obediente. Lembrei do avô médico, que morreu muito cedo, quase não convivi com ele. Mas sei que nas epidemias do começo do século XX, ou quando a aviação de Getúlio ameaçava bombardear São Paulo, procurava pôr os filhos a salvo no interior.
Para entrar em Morungaba, passagem obrigatória para Amparo e Serra Negra, foi preciso dar a testa ao termômetro. Protegi a boca e o nariz, e a enfermeira pediu, não sem um sorriso, pelo amor de Deus para eu não espirrar. Não trocamos mais nenhuma palavra, mas acenei agradecido.
Choca um pouco ver o Doces David fechado. Ali, a pausa para a empadinha de palmito e o guaraná era quase obrigatória. Além do cafezinho e das guloseimas que ganharam fama, com muitos anos de trabalho de uma família incansável, o David é também um sebo, onde vendem antigos long-plays e onde pude recuperar Eça de Queirós e Machado de Assis, A mão e a Luva. Imaginem que o David, e seus descendentes, ainda fazem camafeus, que lembram casa de avó, isso sem falar nas queijadinhas. Mas agora o David está fechado.
Na outra ponta da cidade, antes que estivessem a medir a febre dos que vêm, duas garotas sentadas na calçada pareciam conversar e tomar um sorvete, até há pouco tempo atitude que poderia ser considerada como um santo remédio. Dois ou três casais, gente simples, de havaianas, andavam na rua, como se não soubessem ou não ligassem para o vírus. É pena, mas não me atrevi a perguntar o que faziam.
Por fim, cheguei a Amparo, onde vim me abrigar numa casa velha e confortável, cercada de mato e cheia de lembranças. É curioso, a gente sempre se lembra de onde estava nos momentos dramáticos. Quando mataram Kennedy, isso foi em 1963, eu estudava inglês para o vestibular na casa de um amigo. Logo todas as linhas de telefone ficaram congestionadas. Mas acho que todos conseguimos entrar na faculdade.
No fatídico 11 de setembro de 2001, eu vinha para Amparo com um amigo arquiteto, fazíamos algumas melhorias. No meio do caminho, a mulher dele ligou em pânico, chorava muito, tinham atacado as torres gêmeas. Recebemos vários relatos terríveis antes que pudéssemos chegar, nessa época já tínhamos celulares. Aí, vi que as galinhas continuavam ciscando, indiferentes, sinal de que o mundo continuaria seu percurso. Ainda faço bom uso das benfeitorias daquela era.
Na estrada, pouca gente e muitos caminhões, menos que o habitual, e alguns carros, a maioria sem nenhum luxo, gente que parece trabalhar a nosso favor. Enquanto o mundo vive o pandemônio, me refugio em Amparo, sem poder ser chamado de covarde, pois tenho idade em que o vírus pode ser fatal e a ordem é ficar dentro de casa e manter distância. As árvores estão verdes. Os pássaros cantam e voam. As galinhas continuam ciscando. Ainda vamos sair desta.
EDUARDO MUYLAERT
A mulher com a blusa colorida e cheia de sacolas caminhava pela beira da estrada, quebrando a expectativa da paisagem. Por que estaria fora de casa, quando quase todos estão confinados por causa da pandemia? Pode ser que tenha ido comprar mantimentos para alimentar a família, terá filhos? Parece ainda jovem, mantém a cabeça erguida e enfrenta sem temor os percalços do trajeto.
Fazia quinze dias que eu não saia de casa, entre medroso e obediente. Lembrei do avô médico, que morreu muito cedo, quase não convivi com ele. Mas sei que nas epidemias do começo do século XX, ou quando a aviação de Getúlio ameaçava bombardear São Paulo, procurava pôr os filhos a salvo no interior.
Para entrar em Morungaba, passagem obrigatória para Amparo e Serra Negra, foi preciso dar a testa ao termômetro. Protegi a boca e o nariz, e a enfermeira pediu, não sem um sorriso, pelo amor de Deus para eu não espirrar. Não trocamos mais nenhuma palavra, mas acenei agradecido.
Choca um pouco ver o Doces David fechado. Ali, a pausa para a empadinha de palmito e o guaraná era quase obrigatória. Além do cafezinho e das guloseimas que ganharam fama, com muitos anos de trabalho de uma família incansável, o David é também um sebo, onde vendem antigos long-plays e onde pude recuperar Eça de Queirós e Machado de Assis, A mão e a Luva. Imaginem que o David, e seus descendentes, ainda fazem camafeus, que lembram casa de avó, isso sem falar nas queijadinhas. Mas agora o David está fechado.
Na outra ponta da cidade, antes que estivessem a medir a febre dos que vêm, duas garotas sentadas na calçada pareciam conversar e tomar um sorvete, até há pouco tempo atitude que poderia ser considerada como um santo remédio. Dois ou três casais, gente simples, de havaianas, andavam na rua, como se não soubessem ou não ligassem para o vírus. É pena, mas não me atrevi a perguntar o que faziam.
Por fim, cheguei a Amparo, onde vim me abrigar numa casa velha e confortável, cercada de mato e cheia de lembranças. É curioso, a gente sempre se lembra de onde estava nos momentos dramáticos. Quando mataram Kennedy, isso foi em 1963, eu estudava inglês para o vestibular na casa de um amigo. Logo todas as linhas de telefone ficaram congestionadas. Mas acho que todos conseguimos entrar na faculdade.
No fatídico 11 de setembro de 2001, eu vinha para Amparo com um amigo arquiteto, fazíamos algumas melhorias. No meio do caminho, a mulher dele ligou em pânico, chorava muito, tinham atacado as torres gêmeas. Recebemos vários relatos terríveis antes que pudéssemos chegar, nessa época já tínhamos celulares. Aí, vi que as galinhas continuavam ciscando, indiferentes, sinal de que o mundo continuaria seu percurso. Ainda faço bom uso das benfeitorias daquela era.
Na estrada, pouca gente e muitos caminhões, menos que o habitual, e alguns carros, a maioria sem nenhum luxo, gente que parece trabalhar a nosso favor. Enquanto o mundo vive o pandemônio, me refugio em Amparo, sem poder ser chamado de covarde, pois tenho idade em que o vírus pode ser fatal e a ordem é ficar dentro de casa e manter distância. As árvores estão verdes. Os pássaros cantam e voam. As galinhas continuam ciscando. Ainda vamos sair desta.
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