Por EDUARDO MUYLAERT
As cavernas virtuais, nossos discos rígidos e outros os meios de armazenamento, inclusive na nuvem, podem por tudo a perder.
Acordei com o belíssimo artigo MEMÓRIAS DO FUTURO, de meu querido amigo e brother, o focassauro J. MARCELO ALVES, vulgo JOTA, para seus admiradores. Compartilho com ele algumas reflexões vindas de meu ensaio de 2015: DIREITO E FOTOGRAFIA - DUAS PAREDES DA MESMA CAVERNA (http://hdl.handle.net/10438/15740).
Quem me provocou, logo cedo, foi nossa chefe de redação, a dinâmica DANIELA MARTINS. Uma das alegrias da vida é estar cercado de pessoas tão inteligentes, interessantes e produtivas.
A passagem para o século XXI foi marcada pela progressiva implantação da cultura digital. Só no fim do século XIX, bem depois da invenção da fotografia, é que Thomas Edson patenteou a lâmpada elétrica. O telefone chegou ao Brasil logo depois, junto com meio milhão de imigrantes. A televisão veio nos anos 1950, depois da guerra.
Nos fim do século XX, 100 anos apenas depois da lâmpada elétrica, começaram a telefonia celular e a era dos computadores pessoais e das câmeras digitais. Nos últimos anos, a Apple forneceu uma quantidade incalculável de iPhones e iPads, cada um com sua câmera de altíssima qualidade. Embora custem bem mais de um dólar, esses aparelhos cumprem hoje o papel pioneiro das Brownie, da Kodak, empresa que quase desapareceu.
Nossas imagens agora estão na nuvem, essa forma contemporânea de cavernas virtuais. O acervo fotográfico da humanidade pôde se salvar graças aos álbuns e às caixas de sapato. Ainda podemos admirar as fotos de família, todo mundo tinha as suas.
Com o digital, aumentou muito a quantidade de imagens, mas ainda não há uma cultura popular de tratamento e guarda dos arquivos, o que indica que a maior parte dessa produção pode se perder. As imagens inscritas nas cavernas de Lascaux, ou do Piauí, há mais de 20 mil anos não são tantas, mas com a migração do povo que as habitava e as boas condições naturais de preservação, o tesouro se salvou.
O mundo digital trouxe a multiplicação das imagens, mas as cavernas virtuais, os discos rígidos, os meios de armazenamento, inclusive na nuvem, não são favoráveis à preservação por mais do que alguns meses ou anos.
Os escritos que Fernando Pessoa guardava num baú de madeira estão hoje depositados numa caixa-forte no subsolo da Biblioteca Nacional de Portugal, vigiados por câmeras e protegidos até de um terremoto como o de 1755, que devastou Lisboa.
Estamos, aliás, todos vigiados por câmeras, desde as que nos olham na frente de nossos computadores e dos nossos celulares, até as que estão em cada prédio e em cada poste e são monitoradas inclusive pela poderosa NSA, a National Security Administration, do governo americano. Não estamos, apesar disso, tão protegidos quanto os papéis do poeta, e nem o mundo está protegido. Ao contrário, numa espécie de círculo vicioso, parece que quanto maior a insegurança, maior a vigilância, e vice-versa.
Vivian Mayer, considerada uma das mais importantes street photographers, trabalhou como babá nos Estados Unidos por 40 anos e sua obra só foi descoberta depois que morreu, em 2009. Quando Atget morreu, em 1927, grande parte de seus preciosos negativos de vidro, que detalham cada quarteirão da Paris de então, poderiam ter se perdido; foram salvos ao serem comprados pela americana Berenice Abott, outra grande fotógrafa, que tinha sido assistente de Man Ray. Hoje, estão no MOMA e foram objeto de dois dos estudos mais importantes até hoje escritos sobre fotografia: a Pequena História da Fotografia e A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica, de Walter Benjamin.
Lee Miller, que viveu com Man Ray e foi atriz de Jean Cocteau, interpretando a linda estátua de O Sangue de um Poeta, fotografava moda para a Vogue, mas na segunda guerra vestiu uniforme e foi, em companhia de David Scherman, da revista Life, trabalhar como correspondente de guerra. Miller foi a primeira mulher a entrar em Buchenwald e Dachau com o exército aliado e conseguiu registros impressionantes, enquanto muitos de seus colegas homens passavam mal. Ela fez depois o conhecido autorretrato na banheira de Hitler, em Munich.
Tendo largado a fotografia, Lee Miller morreu doente e depressiva em 1977 e aí seu filho, Anthony Penrose, achou num sótão o acervo da mãe e descobriu que a ela tinha sido uma grande fotógrafa. Hoje ele dirige a fundação que cuida e divulga essa obra em museus, livros e filmes.
Assim como as pinturas de Lascaux da Serra da Capivara, esses são alguns exemplos de preciosidades que poderiam ter se perdido, mas que sobreviveram e são importantes documentos de nossa humanidade. Todas foram salvas graças ao suporte físico que ficou resguardado. A quantidade razoável, e a durabilidade do material, negativo, papel ou pintura, mantidos em ambientes protegidos, garantiu essa formidável sobrevivência.
Como vocês estão vendo, a pandemia é grave, mas não a única preocupação. Além do pandemônio político e da crise sanitária, podemos pensar no nosso legado, nas imagens que vamos deixar como registro do nosso tempo conturbado. Como, não sei. Vamos procurar juntos algumas soluções. Mãos à obra.
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