Pular para o conteúdo principal

ELES LÁ FORA E NÓS AQUI DENTRO


Sabiá-laranjeira espreitando o telhado da nossa garagem neste domingo


-Por J. MARCELO ALVES

Apesar do que eu temia no começo, me acostumei com a rotina do teletrabalho. Claro, ainda não é a mesma coisa que estar na minha sala na universidade, conversando com as pessoas diretamente, com os equipamentos ali do lado, acessados em alta velocidade. E a cadeira aqui de casa teima em continuar não sendo a mais adequada. Mas entrei em uma rotina que funciona, que é o que importa, e as aulas continuam sendo tocadas até que sem grandes problemas, depois de alguns ajustes.

Quando a gente fica em casa, há a vantagem de mais tempo para deixar a mente divagar nos intervalos do trabalho --idealmente, tem que levantar do computador e dar uma espraiada a cada duas horas, no máximo.

E é aí que a gente observa as pequenas coisas às quais não temos acesso na proverbial correria do dia-a-dia. E, no fim, acho que a vida é feita mesmo é das pequenas coisas, se me perdoam a filosofia de buteco.

Como é a rotina da cachorra nos horários em que eu não costumava estar aqui?

Como é o percurso da luz solar aqui nesta casa (para a qual mudamos há meros três meses) ao longo do dia?

Quais os visitantes penosos que aparecem aqui e a que horas?

Como adoro fotografia, esse último item dá oportunidade para alguma diversão --e, para quem tenta fotografar animais com uma teleobjetiva de foco manual, também muitos xingamentos. Por moramos em uma vila sem saída distante do barulho da cidade e com várias árvores frutíferas e umas palmeiras que frequentemente têm coquinhos, a algazarra costuma ser grande.

Bem-te-vis, sabiás-laranjeira, periquitos-ricos, periquitões-maracanãs, beija-flores, vários pequenos barulhentos e coloridos que ainda não identifiquei, anus-pretos (que eu nunca tinha visto na cidade até esta semana) e um psitacídeo (nome pedante para a família do papagaio) grande, arisco e barulhento que ainda não sei o que é, mas passam vários por aqui bem cedo e bem no final da tarde.

Estão na moda as fotos --e por causa delas os cartums e memes-- de animais silvestres ou semi-silvestres, em várias cidades do mundo, aproveitando o isolamento humano para retomar ambientes antes entulhados de gente. Dá aquela impressão de filme pós-apocalíptico, claro, mas para mim é, mais que tudo, lindo.

Eles lá fora e nós aqui dentro o máximo que pudermos, para que o vírus não cause ainda mais perda e dor.

Periquito-rico se deleitando em uma de nossas palmeiras na semana passada

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Posse da Vida

                      No banco do meio na fileira à minha frente, um moço lê um livro. Do outro lado do corredor, outro moço e outro livro. Não estou no metrô de Londres. No universo de um voo doméstico brasileiro, em uma manhã de quinta-feira, essa incidência de leitores me chama a atenção. Eu mesma leio, com o laptop aberto. Talvez eu esteja simplesmente procurando significados e comparsas para a sensação de bem-estar deste momento.               Apuro a visão para tentar enxergar algo do livro do moço da frente. Do outro lado do corredor, o outro moço apoiou o dele na mesinha, sublinha trechos com um lápis e de vez em quando para de ler e parece refletir.               Daqui a 72 horas, Lula estará subindo a rampa do Planalto. Voamos rumo a Brasília. Da minha parte, sem medo de ser feli...

UM DIA DE CADA VEZ, o caruncho

Desde há muito tempo aderi aos orgânicos, mas na era pré pandêmica me atinha principalmente às frutas, verduras e legumes. Além disto, desde que meu ninho esvaziou deixei de estocar o que quer que fosse. A pandemia mudou tudo. Descobri um hortifruti sensacional, compra online, entrega em domicílio. E que, além dos vegetais frescos, tem grãos -o melhor milho de pipoca de todos os tempos- açúcar demerara, mel, molho de tomate pronto, farinhas. Aderi entusiasticamente. E cometi a bobagem de comprar mais feijão do que sou capaz de comer. Hoje fui buscar o último pacote para cozinhar. No fundo de uma das caixas de plástico, brancas, em que guardo meus mantimentos, percebi pontinhos pretos. Imaginei que fosse um saquinho de linhaça que tivesse furado. Só que a linhaça se movia, reparando bem. Tirei a caixa de dentro do armário para ver melhor. Minhas amigas, meus amigos, faltam-me recursos narrativos... Conheci caruncho muito bem. Criança bem novinha, morei certa vez em uma casa que tinha mi...

DE PERNAS PARA O AR (Edu)

Por EDUARDO MUYLAERT Joaquim Fernandes era um rapaz tímido, não fazia sucesso com as mulheres, também não era bonito nem feio, talvez um pouco sem graça. Não combinava com carnaval. Nos bailes se tornava um chato, enchia a lata e desandava a falar besteiras, ninguém aguentava. Joaquim não se via enturmado na folia, queria mesmo era ter uma namorada, nem precisava ter beleza ou outras qualidades, só tinha que ter pernas bonitas. Sim, acreditem, essa era a única exigência de Joaquim Fernandes, uma espécie de fetichismo que nunca escondeu. Todos os anos se renovavam as esperanças de Joaquim no caminho do clube Caiçara, o melhor da cidade. Quem sabe dessa vez vai; tinha apostado aos 14, 15, 16 e 17. Agora já era maior de idade, ia jogar todas as fichas. De fato, logo ficou vidrado numa morena não muito grande, nem chegou a reparar no rosto, tão distraído estava com as pernas sinuosas, em tons que tentou definir como uma mistura delicada de sépia, rosa, e um pouco de our...