Pular para o conteúdo principal

CORTE

Por RICARDO SILVEIRA

Hoje, resolvi cortar o cabelo, só que na primeira pessoa.
Corte, a rigor, não houve. Faxina é um termo mais adequado.
Tomei essa decisão um pouco por ócio e muito por TOC.
Ao aparecimento da primeira ponta enrolada, fugia para a querida biboca do seu Malachias.
Como há um vírus que nos separa, o jeito foi a auto-mutilação madeixal.
Adotei um estilo pragmático, o estilo denominado por mim de “laçada alicate”.
Pega essa visão: junta um chumaço com a mão invertida, amassa o escalpo, abre o indicador e o médio, alicateia a cabeleira e corta o que sobrar.
A parte frontal, o lado iluminado da nossa lua, é mais fácil.
A parte posterior, a oculta, sabe-se lá como ficou.
Mas não há problema.
Cortar o próprio cabelo, em tempos de quarentena, é ato rebelde e libertário, um dos poucos que nos restam.
Um vizinho, este um pouco mais arrojado, tentou aparar a cabeleira com essas máquinas. Mas errou logo na primeira curva, acentuando demais o arado capilar e teve que sacrificar todo o cabelo.
Assumiu o carecão todo orgulhoso no grupo de zaps dos amigos.
No excesso de vídeos e memes repetidos e desgastados, o novo visu desse meu amigo alegrou o sábado da comunidade.
No meu caso, devo confessar, já andei cortando por conta outras vezes. Mas eram apenas ajustes, coisa pouca, feito só por preguiça de deixar mais de um real por minuto na cadeira do seu Malachias.
Hoje, não. Hoje foi serviço completo, banho e tosa.
Ficou bom? Para mim, sim. Os poucos fios que começavam a se enrolar agora jazem num saco plástico a caminho da incineração. Sim, para passar o tempo em fim de semana de confinamento prolongado, além da auto-beauté, tenho feito pequenas fogueiras com os dejetos domésticos.
Cabelo de homem tem uma vantagem. Pode cortar errado que um gel (sem álcool, de preferência) assenta e esconde as derrapadas.
Outra vantagem em tempos de quarenta conectada: o raio do zoom tem a opção de esconder o vídeo, sob o pretexto de que isso melhora a conexão.
A mesma que nos poupa de checar a não mais escondida aflição do colegas da firma, nesse momento de tantas incertezas.
Melhor assim. Com a tela escura e os cabelos com privacidade.
Ainda mais no meu caso, que precisei apelar para a tesoura de cortar frango, a única disponível.
Ah, e antes que você se desespere, sim, para o aparo das unhas temos o material adequado.

Foto: Pixabay

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Posse da Vida

                      No banco do meio na fileira à minha frente, um moço lê um livro. Do outro lado do corredor, outro moço e outro livro. Não estou no metrô de Londres. No universo de um voo doméstico brasileiro, em uma manhã de quinta-feira, essa incidência de leitores me chama a atenção. Eu mesma leio, com o laptop aberto. Talvez eu esteja simplesmente procurando significados e comparsas para a sensação de bem-estar deste momento.               Apuro a visão para tentar enxergar algo do livro do moço da frente. Do outro lado do corredor, o outro moço apoiou o dele na mesinha, sublinha trechos com um lápis e de vez em quando para de ler e parece refletir.               Daqui a 72 horas, Lula estará subindo a rampa do Planalto. Voamos rumo a Brasília. Da minha parte, sem medo de ser feli...

UM DIA DE CADA VEZ, o caruncho

Desde há muito tempo aderi aos orgânicos, mas na era pré pandêmica me atinha principalmente às frutas, verduras e legumes. Além disto, desde que meu ninho esvaziou deixei de estocar o que quer que fosse. A pandemia mudou tudo. Descobri um hortifruti sensacional, compra online, entrega em domicílio. E que, além dos vegetais frescos, tem grãos -o melhor milho de pipoca de todos os tempos- açúcar demerara, mel, molho de tomate pronto, farinhas. Aderi entusiasticamente. E cometi a bobagem de comprar mais feijão do que sou capaz de comer. Hoje fui buscar o último pacote para cozinhar. No fundo de uma das caixas de plástico, brancas, em que guardo meus mantimentos, percebi pontinhos pretos. Imaginei que fosse um saquinho de linhaça que tivesse furado. Só que a linhaça se movia, reparando bem. Tirei a caixa de dentro do armário para ver melhor. Minhas amigas, meus amigos, faltam-me recursos narrativos... Conheci caruncho muito bem. Criança bem novinha, morei certa vez em uma casa que tinha mi...

DE PERNAS PARA O AR (Edu)

Por EDUARDO MUYLAERT Joaquim Fernandes era um rapaz tímido, não fazia sucesso com as mulheres, também não era bonito nem feio, talvez um pouco sem graça. Não combinava com carnaval. Nos bailes se tornava um chato, enchia a lata e desandava a falar besteiras, ninguém aguentava. Joaquim não se via enturmado na folia, queria mesmo era ter uma namorada, nem precisava ter beleza ou outras qualidades, só tinha que ter pernas bonitas. Sim, acreditem, essa era a única exigência de Joaquim Fernandes, uma espécie de fetichismo que nunca escondeu. Todos os anos se renovavam as esperanças de Joaquim no caminho do clube Caiçara, o melhor da cidade. Quem sabe dessa vez vai; tinha apostado aos 14, 15, 16 e 17. Agora já era maior de idade, ia jogar todas as fichas. De fato, logo ficou vidrado numa morena não muito grande, nem chegou a reparar no rosto, tão distraído estava com as pernas sinuosas, em tons que tentou definir como uma mistura delicada de sépia, rosa, e um pouco de our...