Pular para o conteúdo principal

OBRIGADA PELA LIGAÇÃO



—  Por SOLANGE REIS

O celular tremeu. Decidi não atender, por mais adorável que Perth seja. Não conheço ninguém que more lá.
Trinta segundos depois, voltou a estremecer. Vencida pela curiosidade, atendi.
—  Olá, aqui é Anna Kjestrup, da Etihad. Estou ligando para falar de sua passagem aérea para Madri.
A voz tinha aquele tom impessoal de telemarketing e emendava uma palavra na outra, desafiando minha capacidade cognitiva para o inglês australiano.
Era preciso escolher uma data nova que fosse até 30 de junho. O sistema não podia ficar em aberto. 
Tal qual a humanidade, a máquina precisa de respostas.
— Não faço a menor ideia de quando vou viajar. Sabe...tem uma pandemia por aí.
Anna insistiu rispidamente.
Sete de junho! Sete de junho!
— É uma ótima data. O número sete traz sorte. 
Que bom que ela gostou.
A moça levou um minuto para acalmar o sistema e transferir a ansiedade deles dois para mim.
Antes de eu ouvir que a Etihad agradecia pela preferência, outra Anna surgiu. Não a funcionária nem a numeróloga, mas minha mais nova melhor amiga de infância.
— Como você está? Como está lidando com tudo isso?
Contei a ela sobre meu confinamento, a precariedade de trabalhar em casa e a vida suspensa indefinidamente.
Ela falou que fazia aulas online de ioga e tentava se alimentar bem. E explicou o rodízio imposto pela empresa. Uns trabalhariam em abril e outros, em maio. Todos em teletrabalho. Salário mês sim, mês não.
Também achou exótico eu ser do Brasil.
— Sorte ainda termos empregos. Fique bem! A Etihad agradece pela preferência.
Por um segundo, tive uma nanopartícula de esperança na humanidade. Durou até ver o presidente de um país exótico limpar o nariz com o braço em meio a seus adoradores.
Senti muita vontade de ligar para Anna.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

NO TÚMULO DO POETA RENÉ CREVEL (edu)

Um poema em prosa de EDUARDO MUYLAERT Da minha casa na avenue de Chatillon que hoje é a avenue Jean Moulin eu podia ter ido a pé em pouco tempo ao descuidado cemitério de Montrouge Acabei nunca indo procurar — na quadra dezenove o túmulo discreto de uma família burguesa singelo granito rosa onde repousam serenos os restos do inquieto poeta René Crevel Se não dou certo em nada me mato — tinha dito leal, cumpriu a promessa — só mais tarde acabou reconhecido cultuado pranteado como poeta e escritor surrealista A vida teve cheia de intempéries tinha ainda catorze anos quando a mãe que só fazia blasfemar contra o cadáver o arrastou para ver o pai dependurado Sem ilusões. Fazia amor com homens e mulheres vivia com a cruel tuberculose — a peste branca e tinha amigos em diversos sanatórios além do peito, doíam muito os rins e a vida Tinha uma amante argentina, —   Condessa Cuevas de Vera a quem deixou a última mensagem — “Favor

QUARENTENA, DIA 62

Por DANIELA MARTINS 16/5 - QUARENTENA, DIA 62. Com quase 4.700 vidas perdidas, o estado de São Paulo superou a China em número de mortes por Covid-19. O Brasil perdeu hoje mais 816 cidadãos para o vírus. A melancolia do dia frio foi aplacada pela live que rolou num dos terraços do bairro, acompanhada e aplaudida pelos vizinhos. Eu e a Teca acordamos bem cedinho e tomamos café da manhã juntas. Os irmãos mais velhos aproveitaram para dormir até tarde, livres das videoaulas. Fiz arroz de carreteiro para o almoço, enquanto sonhava acordada com um piquenique num gramado qualquer. Fiquei com saudades dos nossos piqueniques deliciosos no Parque da Cidade, em Brasília, e no Jardim Botânico aqui de São Paulo, do meu famoso sanduíche de atum com pepino crocante, que nunca faltava. Parece tudo tão distante agora... Que bom que temos essas pequenas lembranças de dias em que fomos felizes sem nenhuma razão especial... Marcamos uma sessão de cinema na sala e eu preciso ajeitar tudo. Va

Anything else I can help you with, ma´am? – parte 3

  ETEL FROTA Em Auckland, passo por debaixo do wharenui , o enorme portal da casa comunitária de encontros māori, de onde ressoa um delicado canto feminino de boas-vindas. A viagem foi dura, mas estou na Nova Zelândia, onde tudo sempre dá certo. Cara a cara com a senhora da imigração, já cheguei me justificando. Sorry, tinha tido problemas no preenchimento da NZeTA, primeiro, e depois na NETD. Fui depositando no balcão o celular aberto no formulário parcialmente preenchido, o certificado de vacinação impresso, o PCR negativo, passaporte. Muito ansiosa, esbarro nas palavras em meu inglês enferrujado pelo confinamento. [Aliás, tenho percebido que enferrujadas estão minhas habilidades de comunicação, mas isto não é assunto para agora.] Com um sorriso protocolar, ela sequer olhou para meu calhamaço.   Tranquilamente, me estendeu uma folha de papel, um xerox mal ajambrado, onde eu deveria marcar um xis declarando estar vacinada e outro confirmando ter tido um PCR negativo até 48 horas