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QUARENTENA, DE 1 A 9

- Por DANIELA MARTINS
16/3 - QUARENTENA, DIA 1. Puxa, Coronavírus, você tinha mesmo que nos fazer desmarcar a comemoração dos 96 anos da Vó Edith?! Ficaremos com a foto dos 95, preparados para arrasar no bailão dos 97!

17/3 - QUARENTENA, DIA 2. Eu, três filhos, dois gatos. Devoramos fandangos e sorvete com nutella. Passa um filho com uma capa de Obi-Wan Kenobi. Começam as aulas pela internet. Tomamos milkshake de flocos. Outro filho leva a cama inteira para a sala e se instala para maratonar séries. Chegamos perto dos 300 casos confirmados. Uma morte. Um presidente completamente sem serventia. Todos os trabalhos adiados ou cancelados. O que faremos?! Queria ao menos quarentenar com o meu amor, pra fortalecer o sistema imunológico. Os gatos dormem enroladinhos. A defesa civil emite alerta de tempestade aqui em São Paulo. Esse livro do Laurentino é fundamental, mas um tanto arrastado na narrativa. Preciso pensar no jantar, porque logo vai dar fome... 

18/3 - QUARENTENA, DIA 3. Bateu a bad e eu resolvi faxinar a casa inteira. Desinfetadas as torneiras, puxadores e maçanetas, seguimos trancadinhos. Os gatos estão felizes com a companhia integral de seus humanos de estimação, que finalmente pararam de entrar e sair e de desaparecer por longas horas. Estamos aprendendo com eles várias técnicas de alongamento da coluna. A coletiva de imprensa do governo federal foi patética. Atrasados no lance, homens colocando e tirando máscaras tentaram convencer a população de que tudo está sob controle e aproveitaram para glorificar o presidente. A população planeja um panelaço contra o governo para a noite de hoje. O presidente convoca um panelaço a favor dele mesmo durante a entrevista. Enquanto isso, mais um ministro testa positivo. Sobe para três o número de mortos. Faço torradas com o pão velho, temperadas com azeite e ervas secas. A Selic cai para 3,75. Vejo no jornal que o presidente do Senado está com o vírus. Penso na possibilidade de apagão governamental. Que buraco! Olho o relógio a cada dez minutos, quero que chegue logo a hora de gritar pela janela “FORA BOLSONARO!”.

19/3 - QUARENTENA, DIA 4. Em casa.

20/3 - QUARENTENA, DIA 5. O clima começa a nublar dentro de casa. Tudo nos irrita. As meninas, infinitamente sábias, organizam os dias em uma planilha colorida. Meu filho, que maratonou séries de animes durante 4 dias seguidos, se levantou e fez milhares de abdominais. O corpo pede. Chegamos a 904 casos e 11 mortes. A coisa vai mal. Crio este blog com amigos e postamos freneticamente durante a tarde. Passamos os últimos quatro anos tentando escrever juntos, mas só a quarentena foi capaz de concretizar o plano. Tudo parece urgente, mas nada sai do lugar se não for por caminhos virtuais. Desejo um mergulho no mar. Eu, que não gosto de água fria. O governador Witzel diz que vai fechar o Rio de Janeiro por terra, céu e mar. Preciso ir buscar meu namorado! Penso em uma missão clandestina de resgate. Me divirto e me angustio. O pai sugere levar as crianças pro interior caso isso seja mais seguro em algum momento. Respiro fundo e percebo na hora que eu não estaria preparada para ficar longe. Que loucura termos que pensar em tudo isso! A escola comunica que as aulas estão oficialmente suspensas até pelo menos 18 de abril. A vida está suspensa. Medito lavando louça, quatro vezes ao dia. Mas só o chocolate e a paçoquinha me acalmam. Penso nas pessoas que não podem se sentir seguras nem dentro de suas casas e naquelas que nem têm casa, chocolate ou paçoquinha. Hoje não liguei a tv e só li os jornais superficialmente, porque precisei de um detox de informações sobre o desgoverno. Panelas soaram pelo bairro fechando o dia, música boa para os meus ouvidos.

21/3 - QUARENTENA, DIA 6. O sábado chegou diferente, ninguém nas ruas e os parques todos fechados por decreto municipal. Fiz as unhas em busca de alguma pequena alegria. O almoço foi filé de peixe assado em papelote, receita que não fazíamos há tempos. Consegui finalmente falar com o meu pai, que por algum mistério não estava atendendo o telefone. Ele mora no interior e tem 79 anos, qualquer sumiço vira um susto. Precisei dar uma caminhada antes que isso não seja mais possível de jeito nenhum. Senti culpa e medo. Na volta, me deparei com um morador de rua construindo um abrigo de madeira e plástico para tentar se isolar. Chorei. O Brasil está prestes a apresentar ao mundo uma triste mistura de coronavírus com exclusão social. Vai ser muito feio. Escrevi no blog sobre isso. Não aliviou.


22/3 - QUARENTENA, DIA 7. Hoje eu fiz pastéis de forno pro almoço, porque o domingo pede alguma rebeldia. É tanta mensagem de WhatsApp que a mão tá travando de dor. Alguém escreveu que em breve vamos começar a ver como são os cabelos reais da mulherada. Fui correndo fazer uma hidratação, pensando em quantas não serão as pequenas libertações dessa porra de quarentena, começando pelos cabelos brancos. Também não se compra mais nada, o que você tem vai ter que dar conta. Troquei ideias sobre possíveis projetos de trabalho, porque sou otimista e porque preciso olhar pra frente para não me deprimir. Tem uma criança na vizinhança que grita todos os dias no mesmo horário “mãe, já acabei!”. As peculiaridades da convivência extrema, já sei até a hora do cocô do menino. Ontem morreu uma pessoa em Petrópolis, a cidade em que morei dos 2 aos 17 anos. Faz pensar que a doença logo vai chegar perto de nós e dos que amamos, não tem muito jeito. As crianças arrumaram as malinhas e fui deixá-las na casa do pai. A cidade vazia é dos entregadores de rappi e ifood, peças de uma engrenagem de conforto que não estamos preparados para fazer parar. Entrei em casa e tudo estava vazio e escuro. Eu não tinha me dado conta de como o isolamento poderia piorar tanto...


23/3 - QUARENTENA, DIA 8. Ontem, sozinha em casa, eu tive uma crise de ansiedade. Senti a garganta fechar, a cabeça doer, e achei que estava com o coronavírus. Fiquei mal mesmo, e entendi que muita gente deve estar passando pela mesma angústia. Pessoas queridas conversaram comigo e me acalmaram. Prestem atenção nos seus amigos, eles podem estar precisando conversar. Consegui dormir bem e acordei com os gatos me pedindo para abrir a janela. Está um dia lindo e eu me senti muito melhor. Isso até ler a MP editada pelo governo, que permite a suspensão dos salários dos trabalhadores por até quatro meses. Não tem sistema imunológico que resista a uma violência dessa! No mundo inteiro, governantes tentam garantir os postos de trabalho e uma renda mínima para a sociedade durante a pandemia, mas o nosso desgoverno segue firme na ilusão neoliberal, implantando a agenda funesta a que se propôs desde o primeiro dia. Quem não morrer pelo vírus pode morrer agora pela fome. Ou pelo ódio. Mas eu torço para que o ódio vire combustível. Doentes e fodidos de cabeça e de recursos, alguma hora vamos sair da clausura e retomar o nosso país. Vai ser o apocalipse zumbi.

24/3 - QUARENTENA, DIA 9. No meio da minha crise de ansiedade, percebi que ficar sozinha seria a pior coisa. Assim que me senti melhor, peguei o carro e vim buscar refúgio na casa do namorado, no Rio de Janeiro. O plano traçado foi cumprido à risca: nenhuma parada no caminho, nem pro xixi. Preparei sanduíches, colei um adesivo de cobrança automática de pedágio no vidro do carro e caí na estrada. Eu e os irmãos caminhoneiros. De vez em quando, algum outro carro passava e trocávamos buzinadinhas rápidas. Empatia entre desconhecidos, o fim do mundo tem dessas coisas. Ao entrar na Linha Vermelha, uma das principais vias expressas da cidade, e perceber que não tem nem as divisões das faixas pintadas no chão, meu coração bateu mais forte. O Rio é essa zona, né? E já deixa claro na hora em que a gente cruza a fronteira. Vai entrar? É por sua conta e risco. Mas eu fui tomada por uma sensação boa, a sensação de estar em casa. Na cidade onde eu nasci, fiz faculdade, tive meus filhos. Onde eu sei dirigir sem Waze. Sabe quando você está doente e a mãe faz uma sopa quentinha? Foi esse o sentimento, principalmente a parte quentinha. Tá tudo fechado no Rio, mas o carioca corre sozinho, pedala, caminha no calçadão, sai em busca do sol. É um astral diferente de qualquer outro lugar. Dá vontade de chamar o coronavírus e mandar na lata dele “relaxa, véi, o ano tava só começando depois do carnaval e tu já veio meter o louco?”. Alguém precisa dar a real pro corona, esse mané. O carioca já enfrenta tanta loucura, tanta precariedade, tanto desgoverno... Desde 2010, quando me mudei daqui, eu não sentia carinho pelo Rio como hoje senti. O que um dia de quarentena solitária em São Paulo não faz com as pessoas!

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