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NORMA

Por RICARDO SILVEIRA

Preciso falar sobre Norma.

Norma é minha vassoura elétrica que foi promovida a aspirador ou, numa visão mais pessimista, um aspirador que perdeu peso e foi rebaixado a vassoura.

Eu e Norma temos nos encontrado com frequência diária e matinal, enquanto o mundo faz Teleyoga Primeiro Grau.

Norma trabalha em dois modos.

O primeiro, mais ruidoso, é o “vamos limpar logo essa droga”.

O segundo, meu predileto, é o suga-quieto, mais lento mas nem por isso menos eficiente.

Suga-quieto é mais indicado especialmente se a faxina for simultânea ao Teleyoga.

Norma tem um defeito. Seu saco é pequeno.

Então, a cada dez minutos, é preciso abrir Norma pelo avesso e manter contato visual e tátil com o submundo de sofás e poltronas. Dejetos que, antes do corona, eu nem sabia que pudessem existir.

Esse é um momento sempre difícil.

Ainda mais porque sou pai de uma ovelha que me foi vendida como um golden retriever.

Quem me diz que meu cão é uma ovelha é Norma e seu sacrário.

Norma tá de saco cheio da minha quarentena.

Eu, de saco cheio de ver Norma, de ter que ligar Norma, limpar Norma, recarregar Norma, ligar Norma, empurrar Norma.

No iPad da Teleyoga ouço a mestra sugerindo paz, respiração e equilíbrio.

Uma Torre de Pisa de pratos melecados me espreita na pia.

Meu cão, deitado feito um tapete, espalhando pêlos como vírus, na eterna quarentena que é sua existência.

Norma, ereta, em sua base reenergizante.

Enquanto a vacina e a primeira videoconferência do dia não chegam, fico dando nome às vassouras.

Novo normal é o cacete.

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