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ENSINO EM DISRUPÇÃO



- Por DANIELA MARTINS 

Em questão de semanas, vimos o sistema de ensino mundial virar de ponta-cabeça. Já não eram novas as discussões sobre a necessidade de mudanças em um modelo antiquado e pautado em transferência massiva de conteúdo, que tratava os alunos como seres quase inanimados, obrigados a passar cinco ou mais horas do dia sentados e concentrados e ainda levar tarefas para casa.

Mas ninguém imaginava mudar isso tudo sem aviso prévio. E então, veio a pandemia e não nos deu outra opção. Enquanto as escolas testam as mais variadas formas de atuação, crianças e adolescentes perdem todas as suas referências de uma só vez e perdem também o seu principal espaço de socialização. Em paralelo, os pais e professores piram.

Para os estudantes da rede privada, a vida escolar virou um verdadeiro laboratório. A escola dos meus filhos adotou um esquema bem variado e livre de horários. Os alunos entram no sistema, acessam as videoaulas gravadas de cada matéria e são encaminhados para exercícios de fixação logo na sequência. Fazem o conteúdo de cada semana de acordo com suas preferências de horário.

Algumas lives têm hora marcada e são momentos de encontro das turmas, numa tentativa de manter a proximidade do grupo e dos professores. A ideia é boa, mas a coisa sai de controle com muita facilidade, é claro. Agora, além do professor, tem uma coordenadora na sala virtual só para mandar a galera calar a boca e prestar atenção. Não funciona, porque eles abrem chats paralelos e zaralham tudo. 

Minha caçula teve educação física neste formato de live e funcionou bem, chegou na sala toda ofegante, contando que usou um coelho de pelúcia como bola.

Conhecidos com filhos em outras escolas me contam diferentes modelos. Alguns colégios estão mantendo as crianças na frente do computador pelo mesmo tempo das aulas presenciais. Não consigo pensar numa criança de 12 anos sentada das 7h30 às 13h na frente de uma tela, sozinha dentro do quarto. Se já era difícil fazer isso numa sala de aula, imagine a distância!

Os dois modelos dividem alunos e pais. Tenho uma amiga que adora o esquema que mantém em casa os horários normais das aulas, porque os filhos acordam cedo e ela consegue dormir “pelo menos até a hora do recreio”.

Muitos dizem que ter hora marcada e carga elevada ajuda na dinâmica da casa e faz com que a criança tenha responsabilidades e um esquema fixo de rotina. É verdade. Vejo que não é fácil eles se organizarem sozinhos quando o esquema é mais solto como no caso dos meus filhos. 

Aqui em casa, tenho uma no sexto ano, um no oitavo e uma no ensino médio. Cada um lida de um jeito pessoal com os novos desafios, oscilando entre dias de empolgação, dias de cansaço e dias de engajamento zero.

Eu acho normal essa variação. Uma das minhas principais críticas ao modelo tradicional de ensino é que ele praticamente reproduz a carga de trabalho dos adultos (que também acho que precisa ser revista). As crianças e adolescentes ficam com pouquíssimo tempo de sobra para descobrir aprendizados que extrapolam o currículo escolar. Isso é péssimo e muito triste, limitado mesmo. 

Aprender a cozinhar, a tocar instrumentos, a dançar, a desenhar, entre milhares de outras possibilidades, é tão importante quanto todo o resto, mas ficou espremidinho em uma ou duas horas por semana, quando a agenda permite. Acaba não sendo propriamente um prazer, mas sim mais uma tarefa a ser cumprida.

Nessa confusão toda, eu me sinto privilegiada, pois meus filhos já são adolescentes e eu preciso me envolver pouco ou quase nada no esquema escolar. Só dou aquele chamadão geral mesmo para perguntar: "Já acessaram o Moodle hoje? Todo mundo com as aulas em dia?".

Mas quem tem filhos abaixo dos 12 anos está praticamente alucinando neste momento. Além de dar conta da limpeza da casa, da alimentação e do próprio trabalho, que também exige inúmeras adaptações para o esquema de home office, precisam sentar ao lado das crianças e acompanhar as atividades, motivar, conferir os deveres.

Outra amiga, advogada, declinou de um encontro literário via aplicativo na semana passada com as seguintes palavras: “Meninas, infelizmente não estou dando conta de tantas atividades virtuais. Estou em teletrabalho e em homeschooling com a minha filha, uma loucura. Tenho muitas atividades agora, vou ter que esperar o retorno dos nossos encontros presenciais”.

Eu mesma já me atrasei dentro da minha própria casa para uma chamada de trabalho. Sim, isso é possível mesmo sem trânsito. Dramático. Difícil exigirmos das crianças e adolescentes toda essa organização e concentração. 

Os professores também estão sendo pressionados além do limite. Preparar e gravar videoaulas não é exatamente uma moleza. Para ficar minimamente bom, é preciso seguir um roteiro prévio como em qualquer produto audiovisual. É uma outra linguagem, que requer formas de comunicação diversas para manter a atenção do espectador. E eles não tiveram tempo e nem preparo técnico para isso, mergulharam sem saber nadar mesmo.

De todo modo, mesmo tendo sido da pior forma possível, acredito que essa chacoalhada forçada pode trazer alterações importantes para o modelo escolar no futuro. Já era claro que manter alunos sentados e olhando para uma lousa durante horas seguidas não funcionava. Agora, podemos aproveitar para medir seus tempos de atenção, para saber seus interesses, para criar novos formatos de conteúdo e de fixação de informações, novas formas de interação e de troca. 

Ninguém quer ficar dentro de casa para sempre, mas ninguém quer voltar para modelos obsoletos e inflexíveis também. Vamos aproveitar a ruptura.

Enquanto isso, as escolas públicas do Brasil nem mesmo puderam tentar se adaptar à nova realidade. Colocaram os alunos de férias enquanto torcem pelo fim da quarentena. O abismo social não pode ser disfarçado nesses momentos, e o problema pode se tornar realmente grave no final de abril, deixando todos os alunos da rede à deriva, sem acesso a nenhuma modalidade de ensino formal.


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