EDUARDO MUYLAERT
Eu conheço esse homem nos mínimos detalhes, dizia no Cartório a escrevente a quem quisesse ouvir. Os outros funcionários não falavam palavra, mas olhavam desconfiados, pois morriam de medo do Dr. Álvaro Perdiz. Ele era o substituto da Terceira Vara Criminal, já há oito meses. Os magistrados, quando chegam, em geral procuram uma aliança com os serventuários, alguma camaradagem, pois sem eles o serviço empaca. Se o trabalho não anda, o corregedor vem atrás e a carreira corre perigo. Dessa vez, foi diferente. Sua Excelência não sorria, no primeiro dia cumprimentou um por um com o braço duro e a mão fria, forçava distância. Depois nada, nem bom dia. Funcionário também é gente, por que tal horror de nós? E que intimidade é essa que Liria exibe, se o sujeito mal fala com ela? Tudo bem que ela é que atende na sala de audiências, que digita no computador decrépito as coisas que o Mestre dita com vagar. A dicção é tão forçada que parece que é para a cretina não fazê-lo repetir, ou para que o réu saiba que a Justiça é fria e implacável. Ou as duas coisas. O povo simples da comarca estranhava o novo Meritíssimo, sempre de terno preto, camisa branca mal passada e gravatas fora de moda. Parecia uma daquelas pinturas antigas de desembargadores que assombram o Palácio da Justiça. Nessas instalações precárias, com freguesia ainda mais precária, o retrato soava deslocado. A servidora, na verdade, também tinha medo dele, não como os outros funcionários que temiam uma advertência, ou remoção indesejada. Quem trabalha há muito tempo no Judiciário logo reconhece um autêntico juiz, que tenha sentimentos, e detecta com a mesma rapidez o incapaz que se arvora em autoridade a fim de esconder a profunda inabilidade em compreender e lidar com o ser humano. O Dr. Perdiz não olhava no rosto das pessoas, conversava de soslaio, do alto do estrado que o fazia parecer maior do que era. Mas gostava de olhar bem no olho do acusado, fulminava durante toda a sessão o infeliz que chegava com algemas nos pulsos, malvestido e suplicante. Só tratava a moça de A Senhora, o promotor e o advogado de Doutor, era como se ninguém tivesse nome. Só o réu, diga seu nome, fale com clareza, não gosto de repetir a pergunta. As absolvições eram raras, a cartorária podia adivinhar pelo ar de enfado do julgador ao ouvir as testemunhas e argumentos da defesa. Os dedos batiam nervosos na mesa, parecendo demonstrar que todo aquele ritual era tempo perdido, mera formalidade. Não é que o Dr. Perdiz fosse desprovido de emoção, é que Liria nunca detectou nele qualquer amostra de bom sentimento. Se a resposta do acusado não era a que ele esperava, seu pomo de adão começava a subir e descer, quase a fugir do pescoço, a face ficava vermelha, ele falava alto e rápido, nem dava para entender. Ela sabia a hora exata do cansaço, pois o Dr. Perdiz saía da postura ereta e bandeava para um dos lados. A esse sinal, Liria trazia um copo de água e um café, que ele agradecia com um rápido piscar de olhos, sem tirar os olhos dos autos sobre a mesa. Certo dia ele cruzava as pernas sem parar e puxava a calça para baixo. A secretária fez que não viu, mas havia um furo na meia preta e ele não se aquietou até o momento de poder ir embora. Nem o joelho da funcionária ele olhava, ela que às vezes vinha com uma saia curta, numa espécie de teste. Nesses dias, ele carregava nos erres, A Senhorra, Porr Favor. Mas sem nenhum comentário. Ao perceber seu misterioso poder, Liria um dia deixou o cabelo solto e com ele roçou o braço do magistrado ao devolver um processo. O pescoço dele arrepiou qual galinha, e retesou-se quase à beira do torcicolo. O lábio fino deu uma tremida, só do lado esquerdo, mas a tentativa de disfarçar deu às feições uma aparência de isquemia. Ela conhecia os humores dele, as rugas na testa na hora da contrariedade, as pálpebras caídas depois da insônia, um esboço de sorriso, logo contido, nas raras e eventuais incongruências que detectava na vida à sua volta. O desejo passava longe, não estava à mostra. O homem é um monstro, pensou Liria. O que esse cara precisa é de uma boa moça da periferia. Acho que vou me casar com ele.
Eu conheço esse homem nos mínimos detalhes, dizia no Cartório a escrevente a quem quisesse ouvir. Os outros funcionários não falavam palavra, mas olhavam desconfiados, pois morriam de medo do Dr. Álvaro Perdiz. Ele era o substituto da Terceira Vara Criminal, já há oito meses. Os magistrados, quando chegam, em geral procuram uma aliança com os serventuários, alguma camaradagem, pois sem eles o serviço empaca. Se o trabalho não anda, o corregedor vem atrás e a carreira corre perigo. Dessa vez, foi diferente. Sua Excelência não sorria, no primeiro dia cumprimentou um por um com o braço duro e a mão fria, forçava distância. Depois nada, nem bom dia. Funcionário também é gente, por que tal horror de nós? E que intimidade é essa que Liria exibe, se o sujeito mal fala com ela? Tudo bem que ela é que atende na sala de audiências, que digita no computador decrépito as coisas que o Mestre dita com vagar. A dicção é tão forçada que parece que é para a cretina não fazê-lo repetir, ou para que o réu saiba que a Justiça é fria e implacável. Ou as duas coisas. O povo simples da comarca estranhava o novo Meritíssimo, sempre de terno preto, camisa branca mal passada e gravatas fora de moda. Parecia uma daquelas pinturas antigas de desembargadores que assombram o Palácio da Justiça. Nessas instalações precárias, com freguesia ainda mais precária, o retrato soava deslocado. A servidora, na verdade, também tinha medo dele, não como os outros funcionários que temiam uma advertência, ou remoção indesejada. Quem trabalha há muito tempo no Judiciário logo reconhece um autêntico juiz, que tenha sentimentos, e detecta com a mesma rapidez o incapaz que se arvora em autoridade a fim de esconder a profunda inabilidade em compreender e lidar com o ser humano. O Dr. Perdiz não olhava no rosto das pessoas, conversava de soslaio, do alto do estrado que o fazia parecer maior do que era. Mas gostava de olhar bem no olho do acusado, fulminava durante toda a sessão o infeliz que chegava com algemas nos pulsos, malvestido e suplicante. Só tratava a moça de A Senhora, o promotor e o advogado de Doutor, era como se ninguém tivesse nome. Só o réu, diga seu nome, fale com clareza, não gosto de repetir a pergunta. As absolvições eram raras, a cartorária podia adivinhar pelo ar de enfado do julgador ao ouvir as testemunhas e argumentos da defesa. Os dedos batiam nervosos na mesa, parecendo demonstrar que todo aquele ritual era tempo perdido, mera formalidade. Não é que o Dr. Perdiz fosse desprovido de emoção, é que Liria nunca detectou nele qualquer amostra de bom sentimento. Se a resposta do acusado não era a que ele esperava, seu pomo de adão começava a subir e descer, quase a fugir do pescoço, a face ficava vermelha, ele falava alto e rápido, nem dava para entender. Ela sabia a hora exata do cansaço, pois o Dr. Perdiz saía da postura ereta e bandeava para um dos lados. A esse sinal, Liria trazia um copo de água e um café, que ele agradecia com um rápido piscar de olhos, sem tirar os olhos dos autos sobre a mesa. Certo dia ele cruzava as pernas sem parar e puxava a calça para baixo. A secretária fez que não viu, mas havia um furo na meia preta e ele não se aquietou até o momento de poder ir embora. Nem o joelho da funcionária ele olhava, ela que às vezes vinha com uma saia curta, numa espécie de teste. Nesses dias, ele carregava nos erres, A Senhorra, Porr Favor. Mas sem nenhum comentário. Ao perceber seu misterioso poder, Liria um dia deixou o cabelo solto e com ele roçou o braço do magistrado ao devolver um processo. O pescoço dele arrepiou qual galinha, e retesou-se quase à beira do torcicolo. O lábio fino deu uma tremida, só do lado esquerdo, mas a tentativa de disfarçar deu às feições uma aparência de isquemia. Ela conhecia os humores dele, as rugas na testa na hora da contrariedade, as pálpebras caídas depois da insônia, um esboço de sorriso, logo contido, nas raras e eventuais incongruências que detectava na vida à sua volta. O desejo passava longe, não estava à mostra. O homem é um monstro, pensou Liria. O que esse cara precisa é de uma boa moça da periferia. Acho que vou me casar com ele.
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