Pular para o conteúdo principal

A FESTA DE CASAMENTO

O BAILE, Ettore Scola, 1983

Por EDUARDO MUYLAERT

Foi uma sorte não ter se casado com aquela mulher. Podia ter acontecido. Quando a conheceu, ficou louco, queria ter filhos. Não deu tempo, a paixão foi quente, mas a ligação volátil.

Além de muito jovem, aparência mais do que idade, a moça era ambiciosa, o rapaz lhe parecia modesto. Atordoado com o brevíssimo aviso prévio, Armando superou o choque e tocou a vida, com algum sucesso e, afinal, um amor alegre e desinteressado.

Angélica, a noiva em fuga, virou dentista, parece que foi largada por um marido rico. Certo é que sumiu das lembranças de Armando, que nunca mais ouviu falar dela. E nem dela se lembrou, até que aconteceu a festa de casamento de uns amigos.

A banda tocava alto, pessoas dançavam, outras se empanturravam, quando aconteceu o imprevisto. Armando tentou ser o mais natural possível, apresentou a esposa a Angélica, que, por sua vez, exibia a seu lado um senhor um pouco obeso, cujo papel não ficou bem esclarecido.

Maria não mostrou nenhum desconforto, pensou Armando, que não queria que o fantasma do passado pudesse atrapalhar. Mas não deixou de notar o olhar disfarçado que Angélica espichava de uma mesa não muito distante.

Os sonhos da noite foram estranhos, coisa da bebida, da comida e do calor. Armando acordou na madrugada, suando em bicas, o coração disparado. Angélica dormia a seu lado, no seu próprio quarto, na sua própria casa. Quando Maria entrou, ele não sabia como explicar. O pânico custou a passar.

Graças a Deus me livrei dessa mulher, pensou ele, aflito com essas perturbações. Foi preciso chegar a segunda-feira para que tudo voltasse ao normal. Armando deu um beijo carinhoso na mulher, deixou as crianças na a escola e chegou cedo ao escritório. Ali, afinal, reencontraria a rotina. Estava tudo certo, chega de assombrações.

Já completamente recuperado, Armando sorriu para a secretária, pediu um café e, comentou distraído:  — precisamos marcar dentista.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

NO TÚMULO DO POETA RENÉ CREVEL (edu)

Um poema em prosa de EDUARDO MUYLAERT Da minha casa na avenue de Chatillon que hoje é a avenue Jean Moulin eu podia ter ido a pé em pouco tempo ao descuidado cemitério de Montrouge Acabei nunca indo procurar — na quadra dezenove o túmulo discreto de uma família burguesa singelo granito rosa onde repousam serenos os restos do inquieto poeta René Crevel Se não dou certo em nada me mato — tinha dito leal, cumpriu a promessa — só mais tarde acabou reconhecido cultuado pranteado como poeta e escritor surrealista A vida teve cheia de intempéries tinha ainda catorze anos quando a mãe que só fazia blasfemar contra o cadáver o arrastou para ver o pai dependurado Sem ilusões. Fazia amor com homens e mulheres vivia com a cruel tuberculose — a peste branca e tinha amigos em diversos sanatórios além do peito, doíam muito os rins e a vida Tinha uma amante argentina, —   Condessa Cuevas de Vera a quem deixou a última mensagem — “Favor

QUARENTENA, DIA 62

Por DANIELA MARTINS 16/5 - QUARENTENA, DIA 62. Com quase 4.700 vidas perdidas, o estado de São Paulo superou a China em número de mortes por Covid-19. O Brasil perdeu hoje mais 816 cidadãos para o vírus. A melancolia do dia frio foi aplacada pela live que rolou num dos terraços do bairro, acompanhada e aplaudida pelos vizinhos. Eu e a Teca acordamos bem cedinho e tomamos café da manhã juntas. Os irmãos mais velhos aproveitaram para dormir até tarde, livres das videoaulas. Fiz arroz de carreteiro para o almoço, enquanto sonhava acordada com um piquenique num gramado qualquer. Fiquei com saudades dos nossos piqueniques deliciosos no Parque da Cidade, em Brasília, e no Jardim Botânico aqui de São Paulo, do meu famoso sanduíche de atum com pepino crocante, que nunca faltava. Parece tudo tão distante agora... Que bom que temos essas pequenas lembranças de dias em que fomos felizes sem nenhuma razão especial... Marcamos uma sessão de cinema na sala e eu preciso ajeitar tudo. Va

Anything else I can help you with, ma´am? – parte 3

  ETEL FROTA Em Auckland, passo por debaixo do wharenui , o enorme portal da casa comunitária de encontros māori, de onde ressoa um delicado canto feminino de boas-vindas. A viagem foi dura, mas estou na Nova Zelândia, onde tudo sempre dá certo. Cara a cara com a senhora da imigração, já cheguei me justificando. Sorry, tinha tido problemas no preenchimento da NZeTA, primeiro, e depois na NETD. Fui depositando no balcão o celular aberto no formulário parcialmente preenchido, o certificado de vacinação impresso, o PCR negativo, passaporte. Muito ansiosa, esbarro nas palavras em meu inglês enferrujado pelo confinamento. [Aliás, tenho percebido que enferrujadas estão minhas habilidades de comunicação, mas isto não é assunto para agora.] Com um sorriso protocolar, ela sequer olhou para meu calhamaço.   Tranquilamente, me estendeu uma folha de papel, um xerox mal ajambrado, onde eu deveria marcar um xis declarando estar vacinada e outro confirmando ter tido um PCR negativo até 48 horas