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UM DIA DE CADA VEZ, a tristeza


- Por ETEL FROTA

Não sei vocês. Eu, choro todos os dias.

O Dia Zero da minha quarentena, a véspera da Grande Compra de Supermercado, terminou com a notícia da morte trágica de uma querida amiga. Foi ali que comecei a chorar. Fazia muito tempo que andava de olhos secos, ardidos e apressados.

Desde então, venho desaguando à toa. Por ela, por mim, pelos meus, pelos dela, pelos teus, pelos nossos, por nós todos, amém. Por esse mundo que olho pela janela e pela TV, esperando acordar a qualquer momento. Pela saudade das filhas, da neta, distantes. Uma, pela geografia. As outras, pela quarentena.

Algumas vezes, tenho chorado por coisas bonitas. A canção do meu amigo Sonekka, por exemplo, que diz:

Por todos os artistas
garçons e balconistas
as agências e os turistas
padres, pobres, motoristas
Deus dai luz aos cientistas
protegei os enfermeiros
os velhinhos e os enfermos

força pra todos doutores
chuva pros agricultores
equilíbrio aos fabricantes
e todos trabalhadores
dai bom senso aos governantes
altruísmo aos financistas

Semana passada, chorei porque era aniversário do Lucas, o mais bonito de todos os meus parceiros, o único que eu carreguei no colo, e que agora vai ser pai. São essas as belezas que me fazem chorar. 

Mas tenho chorado, às vezes, também por mesquinharias. 

Já os casos de superação, de solidariedade, de resiliência escolhidos pelos canais de notícias, não me comovem. As hashtags otimistas, os cantos gospel nas sacadas, não só não me comovem como às vezes me irritam, pronto, falei. Meu habitual descompasso com os otimismos apressados costuma se agravar nas crises.

As filas de caixões na Itália, os caminhões frigoríficos de Nova York me causam dor legítima e profunda. A imagem do noticiário que me fez chorar foi a do rosto dos enfermeiros chineses feridos pelas máscaras. Hoje, chorei pela morte do menininho britânico de 5 anos. E choro todas as vezes em que penso na solidão dos funerais sem despedida.

Eu tinha essa amiga, que morreu. Mantivemos, anos a fio, uma profundíssima interlocução sobre assuntos fundamentais. Entre eles, a morte. Minha amiga era psicanalista, dedicou a vida à escuta amorosa de doentes terminais e ao apoio das suas famílias e a um compartilhamento generoso do seu imenso saber. Foi a primeira e única leitora de um texto em que trabalho há mais de uma década, que pretende falar de morte para crianças. Escreveria a apresentação desse texto, na hipótese de que ele viesse a ser publicado. Ao mesmo tempo, ela queria reduzir o volume de livros de sua biblioteca e, ao longo do último ano e ao sabor das nossas conversas, me presenteou com vários pequenos acervos preciosos. 

A minha amiga morreu de uma morte individual. Era a véspera dessa morte coletiva. Nunca mais vou abraçá-la, mas este fato nem é o mais importante, pois talvez nunca mais nos abracemos, todos, da mesma maneira, como bem lembrou o Ricardo Silveira.

Não sei vocês, mas choro todos os dias, por sentimentos vários. Quem sabe esse álibi pra poder desaguar em paz tenha sido uma última generosidade da minha amiga, entre as tantas e tamanhas com que ela me cumulou, décadas a fio. Trespassada pela tragédia individual, na coletiva saltei por cima da negação, da raiva e da negociação da Kübler-Ross, desembarcando diretamente na tristeza. Depois, dizem que vem a aceitação. Em descompasso com meu entorno, espero ter, um dia desses, alguém um pouco menos animado pra chorar junto comigo.  


Comentários

  1. Linda amiga! Compartilho da mesma dor diária... Aprendizados profundos! Beijo no coração

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