-Por J. MARCELO ALVES
Resisti, mas não posso me furtar a escrever sobre o assunto que não sai da boca do povo nos últimos dias. Como será o futuro de nossas memórias em um mundo de rápida evolução tecnológica? Um papel ou inscrição na pedra você lê por séculos ou milênios, se entender o idioma. Mas vamos conseguir abrir nossos arquivos de áudio, vídeo, imagem, texto e outros daqui a dez anos? E vinte? Cinquenta?
O tema surgiu um dia desses em conversa com os Focassauros, mas eu também havia trocado ideias sobre isso uns dias antes com um colega de trabalho ao falar de nossas frustrações ao mandar arquivos para outras pessoas. A discussão, no entanto, não é novidade e existem muitos textos sobre o assunto, há muitos anos. E ainda assim muita gente não tem ideia de sua importância.
O primeiro nível do problema está nas mídias onde nossas memórias são salvas. Toda família deve ter umas fitas K7 (áudio) ou VHS (vídeo) enfurnadas em alguma caixa no fundo de um armário, sem ter como tocar ou ver seu conteúdo --isso ainda no reino do analógico, ignorando que fitas K7 eram usadas também para guardar arquivos de computador, nos velhos tempos que não vivi.
Indo para o digital, que tal disquetes, sejam de 8 polegadas, 5 e 1/4", aqueles grandes e moles, ou de 3,5", mais durinhos e resistentes e que agora sobrevivem só como o "ícone de salvar" na maioria dos programas? Quantos ainda consegue ler essas coisas? Tenho alguns computadores velhos no laboratório que têm leitores de disquete, mas estão morrendo, um por um, com a marcha inexorável da entropia. Zip drives, mini-discs e outras mídias exóticas, então, nem se fale.
CDs e DVDs, por enquanto, sobrevivem bem. Muitos computadores ainda têm leitores para esses discos, mas vários, como os da Apple, já os aposentaram e é necessário comprar um leitor externo se for preciso acessar tais mídias. No entanto, é só questão de tempo para que tenham o mesmo destino de disquetes e fitas.
Pen drives e discos rígidos, internos ou externos, são os formatos dominantes hoje para armazenamento físico. Podemos ter certeza no entanto que um dia cairão em desuso também, junto com as portas USB (os "buraquinhos retangulares") às quais são conectados quase todos eles. De novo, alguns laptops nem têm mais tais portas, para serem mais finos e economizar espaço (mas não preço, por certo).
Então que vá tudo para a nuvem, que é ótima até a hora que chove. Quem é que sabe quando seu provedor vai desaparecer? O Google é notório por matar, de uma hora para outra, seus produtos tão práticos e gratuitos --ou melhor, pelos quais pagamos com nossos dados de buscas, contatos, localização, hábitos, compras etc. etc. Eles sabem mais sobre você que seus entes queridos mais próximos, ou até mesmo você, e lucram loucamente com isso. Mas essa é outra história.
O outro nível, talvez mais crítico que o das mídias e formas de armazenamento é o dos formatos em que os arquivos são salvos. Agora estou falando do modo como o computador traduz algo que nós consumimos para os bits e bytes que ele saiba ler, guardar e depois reproduzir quando pedirmos. Arquivos PDF, GIF, JPEG, DOC, TXT, MP3, WAV, XLSX, MPG e assim por diante.
Você já tentou abrir hoje em dia um arquivo DOC dos anos 1990, usando a versão atual do Microsoft Word? Vai ver "caca digital" na sua tela. O formato, propriedade da Microsoft e secreto, não é mais entendido pelos programas atuais. Tentei isso recentemente e o conteúdo daquele arquivo está perdido para sempre a não ser que eu encontre cópias antigas dos programas necessários e os instale em algum computador antigo onde consigam funcionar --tarefa praticamente impossível, portanto. Já um arquivo TXT, que é um formato aberto e público, pode ter a idade que tiver e pode ser aberto por algum programa, e sempre poderá. Por que isso?
Se não soubermos direito como um arquivo é organizado, não temos como ler seu conteúdo; é como tentar tentar ler uma inscrição antiga em um pergaminho, mas sem conhecer nem o sistema de escrita nem o idioma.
Daí a importância dos formatos abertos, cujas especificações são públicas e, portanto, qualquer programador de computadores pode escrever programas que os leiam. Especialmente por estes formatos não terem restrições legais ou econômicas quanto a quem pode utilizá-los --o que não é necessariamente o caso para formatos proprietários, oriundos de empresas.
Por que as pessoas acabam usando formatos não abertos, então? Basicamente, usamos o que todo mundo usa. Não o melhor, necessariamente, mas o que se tornou dominante, seja lá por qual motivo. Não adianta eu mandar um texto em formato ODT ou uma planilha em ODS se quase ninguém vai conseguir abrir. Mesmo que os programas usados para tanto (pacote LibreOffice) sejam gratuitos, muito bons e rodem em qualquer computador.
Governos há muito perceberam a armadilha que é depender de empresas e seus formatos fechados e o problema que será, burocratica e historicamente, ter dados que podem ser ilegíveis em poucos anos. Mesmo hoje, tem vezes que um arquivo salvo na versão Mac não abre de forma totalmente correta na versão Windows, ou vice-versa, do mesmo programa! Começaram então a implementar o uso de formatos abertos. Mas a adoção é lenta e o lobby das grandes empresas é pesado para evitá-la. É muito dinheiro envolvido, claro.
Sempre que posso, salvo meus dados em formatos abertos, em programas livres. Só uso um formato proprietário quando não há alternativa ou se preciso mandar algo para outra pessoa. Vamos ver se, em 2040, vou conseguir abrir o arquivo onde guardo o original deste texto aqui.
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