Pular para o conteúdo principal

A ESCRITA E O OVO











Por EDUARDO MUYLAERT 


Algumas manhãs, quando acordo, sinto que meu cérebro está pronto a entrar em estado de composição, que me basta tocar a tecla compose, onde quer que ela se situe, para surgir a obra;  aí, procuro não me dispersar, apenas sentir o que a vida oferece.
Dessa vez, meu corpo pedia um ovo quente, que exige não só concentração, como atenção, para não se tornar um desastre. Felizmente havia ovos na geladeira, o que é bom, mas não o ideal, pois é sempre melhor começar com um ovo que esteja na temperatura ambiente.
Na minha família, o ovo quente era ao mesmo tempo uma celebração e um desafio. Um expert jamais deixa a gema completamente crua, e só os piores amadores servem um ovo cozido quando prometem um ovo quente. Meu avô era o grande especialista, tinha todos os ingredientes do grande criador, tempo a perder, uma certa sofisticação no seu modo de vida modesto, e alguma paciência, que só se revelava nessas horas.
No meu caso, opto por soluções mais simples. Com pouca noção de tempo e temperatura, sem nenhuma vocação para meteorologista, opto pelo voo visual, que na casa paterna seria considerado uma indignidade. Não que não tenha cuidado, após abrir com cerimônia a porta da geladeira quase vazia, branca como devem ser as geladeiras, observo com atenção a bandeja dos ovos, que fica na porta. Examino o tamanho, a coloração, o formato, a perfeição, mas na verdade fico esperando o chamado, é como se um daqueles exemplares, todos tão parecidos e tão dessemelhantes, como diria Caetano, acenasse para mim e dissesse hoje é o meu dia, chegou a minha vez.
O mais difícil na vida são as escolhas, mas sinto que é o ovo que escolhe o dia em que vai preencher o seu destino alternativo, o original era tornar-se primeiro um pinto, depois um frango, depois um galo ou, se a natureza assim o determinasse, uma galinha, pronta a botar novos ovos, com o canto característico que nunca descobri se é de vitória ou de dor pela passagem do futuro rebento, ou ovo quente, pelo estreito conduto que o levará à inebriante luz do dia.
Aquele ali parece que tem uma sujeirinha, o outro tem uma marca de outra cor, uma possível descalcificação, mas finalmente há um que me olha com uma espécie de súplica, por favor, chegou a minha vez, não quero, de novo, ser deixado para trás. Pronto, livre do embaraço da escolha, atendo ao chamado e me livro, ao mesmo tempo, de qualquer espécie de arbítrio ou responsabilidade pela decisão. De todo modo, sempre passo o escolhido debaixo de uma torneira fria, com o duplo objetivo de eliminar qualquer possível sujidade, ou excremento (disgusting, diria o velho), bem como de trazê-lo para mais perto da desejada temperatura ambiente.
Nessas ocasiões, sempre rio da célebre questão que provoca tanta celeuma e divide a humanidade, quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, certo de que ninguém é capaz de responder conclusivamente a esse dilema, a não ser que seja um darwinista ou criacionista, correntes que talvez cheguem a conclusões parecidas, na difícil hipótese em exame, mas por caminhos completamente diferentes. No caso de Colombo, o ovo veio antes. No meu, com certeza, uma galinha veio antes. E não estou nem aí.
Quebro delicadamente a casca, na borda de um pote de cerâmica daquelas azuis e brancas que só se fabricam em Monte Sião; além de resistentes, podem ser levadas sem medo ao banho maria, expressão que me faz rir, penso na Maria tomando banho, e que parece cada vez mais em desuso, na era do micro-ondas e dos fornos elétricos.
Pego uma panela de porte médio e encho de água até uma altura de mais ou menos quatro centímetros. Se a panela for muito grande, a água custa a esquentar e além disso há desperdício de gás, e da própria água, cada vez mais rarefeita e preciosa. Aí há outra decisão a ser tomada. Devo colocar a tigela com o ovo cru de pronto, ou esperar a água ferver?
Tive que reconhecer minha impotência em seguir as prescrições dos mestres, que mandavam colocar o ovo diretamente na panela, com água fria, e contar três minutos depois da fervura, para um ovo normal, dois e meio, para a gema mais mole, ou quatro, para a gema mais endurecida, método recomendado pela Anvisa, mas considerado selvagem pelos verdadeiros connaisseurs.
Vocês sabiam que, hoje, nos lugares públicos, é proibido servir ovo com a gema mole? As malditas autoridades sanitárias acabaram com a festa, as delícias da gema quase crua nos ovos fritos de boteco. Tem os que preferem no óleo, mas na minha casa a regra era serem fritos na manteiga, com uma técnica, hoje perdida, que criava uma rendinha mais queimada à volta toda do petisco.
Rompendo com a tradição, optei pelo método de despejar o conteúdo na acima mencionada terrina azul e branca, e colocar o mencionado pote na água logo após a fervura. Não vejo vantagem em colocá-la na água fria, pois isso não acelera o processo; ainda, a cerâmica protege o ovo do choque térmico que poderia desestabilizá-lo, ou provocar ruptura da casca, com possível vazamento, pois casca já não há. Demais, enquanto a água não ferve, consigo ir até à lata de lixo e desvencilhar-me da casca, pois não gosto de vê-la quebrada, ainda pingando, em cima da pia da cozinha.
Agora não posso desviar o olhar, a partir do momento em que coloquei a tigela de cerâmica dentro da panela com a água fervendo, não sei porque se diz água fervendo e não água fervente, tenho de concentrar minha atenção, embora as ideias pululem, o ovo ou a galinha, porque chamam as mulheres fáceis de galinhas, fáceis para os outros, pois eu sempre me dou mal, mas hoje é domingo, pede cachimbo, e não pé de cachimbo, como dizer os ignorantes, e eu vou comer um ovo quente do meu jeito, livre das tradições e das manias e meticulosidades do finado avô, da vigilância da mãe, da droga da grape-fruit, que eu comia para parecer fino, mas eu não sou.
Claro, tem um resto de pizza fria na geladeira, uma coca zero aberta, espero que ainda tenha um pouco de gás, mas hoje eu quero me lembrar da infância, achar que ainda faço parte daquele mundo, que o chato do vô até gostava de mim, que se a mãe estivesse viva ela ia fazer o ovo quente para mim, daquele jeito que o pai gostava, e eu ia me sentir um príncipe, ou pelo menos duque ou conde.
Mas hoje vou comer um ovo quente do meu jeito, a gema ainda está mole, a clara já está branca, hora de colocar o sal, não posso deixar passar do ponto, afinal eu mereço, desde que a galinha da Patricia me deixou é o que me resta, tentar achar a tecla compose e enfrentar o domingo a partir de um ovo quente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

NO TÚMULO DO POETA RENÉ CREVEL (edu)

Um poema em prosa de EDUARDO MUYLAERT Da minha casa na avenue de Chatillon que hoje é a avenue Jean Moulin eu podia ter ido a pé em pouco tempo ao descuidado cemitério de Montrouge Acabei nunca indo procurar — na quadra dezenove o túmulo discreto de uma família burguesa singelo granito rosa onde repousam serenos os restos do inquieto poeta René Crevel Se não dou certo em nada me mato — tinha dito leal, cumpriu a promessa — só mais tarde acabou reconhecido cultuado pranteado como poeta e escritor surrealista A vida teve cheia de intempéries tinha ainda catorze anos quando a mãe que só fazia blasfemar contra o cadáver o arrastou para ver o pai dependurado Sem ilusões. Fazia amor com homens e mulheres vivia com a cruel tuberculose — a peste branca e tinha amigos em diversos sanatórios além do peito, doíam muito os rins e a vida Tinha uma amante argentina, —   Condessa Cuevas de Vera a quem deixou a última mensagem — “Favor

QUARENTENA, DIA 62

Por DANIELA MARTINS 16/5 - QUARENTENA, DIA 62. Com quase 4.700 vidas perdidas, o estado de São Paulo superou a China em número de mortes por Covid-19. O Brasil perdeu hoje mais 816 cidadãos para o vírus. A melancolia do dia frio foi aplacada pela live que rolou num dos terraços do bairro, acompanhada e aplaudida pelos vizinhos. Eu e a Teca acordamos bem cedinho e tomamos café da manhã juntas. Os irmãos mais velhos aproveitaram para dormir até tarde, livres das videoaulas. Fiz arroz de carreteiro para o almoço, enquanto sonhava acordada com um piquenique num gramado qualquer. Fiquei com saudades dos nossos piqueniques deliciosos no Parque da Cidade, em Brasília, e no Jardim Botânico aqui de São Paulo, do meu famoso sanduíche de atum com pepino crocante, que nunca faltava. Parece tudo tão distante agora... Que bom que temos essas pequenas lembranças de dias em que fomos felizes sem nenhuma razão especial... Marcamos uma sessão de cinema na sala e eu preciso ajeitar tudo. Va

Anything else I can help you with, ma´am? – parte 3

  ETEL FROTA Em Auckland, passo por debaixo do wharenui , o enorme portal da casa comunitária de encontros māori, de onde ressoa um delicado canto feminino de boas-vindas. A viagem foi dura, mas estou na Nova Zelândia, onde tudo sempre dá certo. Cara a cara com a senhora da imigração, já cheguei me justificando. Sorry, tinha tido problemas no preenchimento da NZeTA, primeiro, e depois na NETD. Fui depositando no balcão o celular aberto no formulário parcialmente preenchido, o certificado de vacinação impresso, o PCR negativo, passaporte. Muito ansiosa, esbarro nas palavras em meu inglês enferrujado pelo confinamento. [Aliás, tenho percebido que enferrujadas estão minhas habilidades de comunicação, mas isto não é assunto para agora.] Com um sorriso protocolar, ela sequer olhou para meu calhamaço.   Tranquilamente, me estendeu uma folha de papel, um xerox mal ajambrado, onde eu deveria marcar um xis declarando estar vacinada e outro confirmando ter tido um PCR negativo até 48 horas